Por Gustavo Corção,
publicado n’o Globo em 16 de setembro de 1972
EM TEMPOS menos tormentosos jamais me ocorreria a ideia de perder meu tempo na leitura do livro Jesus Cristo Libertador de Leonardo Boff, e por muito mais forte razão jamais empreenderia a tarefa da cuidadosa ponderação dos termos deste artigo. A própria tática da luta parece desaconselhar a publicidade que inevitavelmente darei a um obscuro, perturbado e enfadonho "teólogo". O que, no caso, me obriga a contrariar todas essas ponderações é a constelação de conivências escandalosamente traçadas em torno daquilo que o livro em questão representa. É por causa do insuportável escândalo que escrevo; e não ignoro que, amanhã ou depois, os vários mandarins dirão que fui eu o promotor do escândalo, e que o maior escândalo é o de quem ainda se atreve a gritar contra os escândalos.
VAMOS pois ao livro do Sr. Leonardo Boff, mas de início quero deixar bem clara a perspectiva de minha abordagem. Talvez voltemos a dizer alguma coisa sobre a matéria tratada ou maltratada no livro. Antes disto quero restringir-me à consideração de duas propostas preliminares do autor, que considero inaceitáveis, e que, para mim, o desqualificam até sinais de retratação e de conversão.
A PRIMEIRA proposta está no início do Capítulo I. Depois da pergunta de Nosso Senhor aos seus discípulos: "Quem dizem os homens que eu sou?", o autor escreve: "Essa pergunta de Jesus a seus discípulos ressoa através dos séculos até hoje e possui a mesma atualidade como quando (sic) foi colocada (sic) pela primeira vez em Cesárea de Filipe (Mc 8, 29). Todo homem que alguma vez se interessou por Cristo não pode se esquivar a semelhante questionamento (sic). A cada geração cabe responder dentro do contexto de sua compreensão do mundo, do homem e de Deus" (grifo meu).
SEM deter-me na má qualidade da língua, lembro ao leitor que essa passagem, em que Nosso Senhor, interpelando os discípulos [...] etc.", isto é, a cada geração e a cada indivíduo cabe responder segundo o sangue e a carne e não segundo a decisiva e definitiva definição que o Pai do Céu ensinou a Pedro, e Pedro nos ensinará até o fim do mundo.
DESDE a primeira página do Capítulo I o Sr. Leonardo Boff, como o faria qualquer protestante das mais desbotadas variantes da heresia, nos diz que "tudo isto" em que cremos constitui a "fé tranquila" dos que não sabem distinguir o que é o fato histórico e o que é "interpretação do fato, condicionada por um horizonte filosófico, religioso, histórico e social". Qualquer leitor menos tolo logo perceberá que esse eufemismo "fé tranquila", para o autor, designa compassivamente a crassa estupidez de um Santo Inácio (de Loyola e de Antioquia), a córnea obtusidade de um São Tomás de Aquino, o infantilismo de um São Domingos, e a delirante e alegre bobice de um São Francisco de Assis. Todos esses, e muitos outros mártires, confessores, doutores e Papas, sem falar nas superadíssimas Virgens, todos esses e nós com eles — patinharam durante dezoito séculos na mais espessa ignorância da "fé tranquila". Por que dezoito séculos? Porque o Sr. Leonardo Boff, no segundo tópico do mesmo Capítulo I, nos informa "que por volta (sic) do século XVIII irrompeu (sic) a razão crítica". Não é muito claro, neste tópico, o pensamento do autor, se pensamento há. Não se sabe se ele quer aludir à crise cultural marcada pela "crítica da razão", ou se ele nos anuncia uma mutação, ocorrida naquele século, e graças a qual a inteligência humana ganhou uma nova dimensão que lhe permite interpretar os mistérios da fé em função da conjuntura socioeconômica da América Latina, interpretada em Mendelin ou Moscou. Talvez seja mais exato dizer que o Sr. Boff anuncia, "por volta do século XVIII" um fenômeno de impenetrabilidade à ação da graça divina. De qualquer modo o autor se apresenta como um animal especificamente diverso de todos aqueles [...] a metade é declaradamente protestante, e a outra metade é neo-meta-protestante, como se nessa doutrina católica tivesse a indigência cultural de uma tribo da Polinésia.
ESSE agachamento dos católicos ditos progressistas diante dos inimigos da Igreja, isto é, diante dos falsos doutores que persistem e agravam o erro de Lutero e de outros (e aqui não me refiro aos pobres irmãos separados que muito antes de todo esse tra-lá-lá ecumênico já sabíamos serem mais herdeiros de erros do que fautores de heresias), esse agachamento, dizia, constitui uma das faces mais hediondas da crise de caráter de nosso tempo. Mas eu não incluo nesta lista o Sr. Leonardo Boff. Não, ele não é um católico, um franciscano, que desonra a tradição e se agacha diante dos pregadores protestantes, como pessoalmente vi o Pe. Guy Ruffier fazer numa missa rezada por alma da esposa de nosso saudoso Carlo Ferrado (Carlo, Dr. Alceu, Carlo e não pela tradução pós-conciliar como o Dr. Alceu o fez em seu tardio elogio fúnebre). Naquela missa a que assisti impávido, por amor ao querido Carlo Ferracio, o Pe. Guy Ruffier, antes da falta de caráter generalizada do 450° aniversário das marteladas de Lutero, tomou a liberdade de entregar a leitura do Evangelho e a homilia aos cuidados de um pastor protestante.
"ET la fin de l'envoi, je touche!" Volto ao Sr. Leonardo Boff e reafirmo que seu caso é simétrico, para não dizer invertido. Ele não é um residual católico que se agacha diante dos protestantes: não, pelos sinais exteriores abundantemente publicados no livro ele é um protestante que ainda se inculca como franciscano. Seu caso não é de falha de caráter, e cremos não exagerar dizendo que é de fraude. E lançamos-lhe um último e quase desesperado apelo: para seu próprio bem seria mais leal, seria mais digno se ele deixasse em paz o proverello de Assis com sua "fé tranquila", seria melhor enfim fundar uma nova seita, a do boffismo.