D. Marcel
Lefebvre
Fidelidade à Santa Tradição perante a tormenta do modernismo
"Bispo de lã. Bispo de ferro."
Quando falamos do Concílio Vaticano II e de seus frutos, torna-se quase impossível não comentarmos sobre o papel de alguns bispos no repúdio à Nova Teologia que se implantara na Santa Sé. Um dos principais nomes dentre estes bispos resistentes é o de D. Marcel Lefebvre, o "bispo de lã" e o "bispo de ferro", nos dizeres de D. Tissier de Mallerais.
Marcel Lefebvre (Tourcoing, 29 de novembro de 1905 — Martigny, 25 de março de 1991) nasceu na França, oriundo de uma família numerosa, com seis irmãos, a maior parte deles, assim como o próprio Marcel, egressos na vida religiosa. Apesar do momento perturbador que representou a I Guerra Mundial na sua vida, com o precoce falecimento de seu pai, René Lefebvre, e a dispersão dos irmãos (narrado em A Pequena História de Minha Longa História), logo cedo, em 25 de outubro de 1923, ingressa no Seminário Francês de Roma. A fama deste seminário, na Europa, era a de dispensar ótima formação a seus seminaristas e seu pai sabia disso, a ponto de conceder um auxílio valoroso na decisão do jovem Marcel. Tutelado pelo Rev. Pe. Henri Le Floch, um anti-modernista de altíssimo quilate, realizou com primazia seus estudos, avançando nos cursos de teologia e filosofia e, mais tarde, no final da década de 1920, recebendo a titulação de doutor em Teologia e Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Em 21 de setembro de 1929 é ordenado sacerdote por Dom Liénart, na capela de Nossa Senhora do Sagrado Coração em Lille, França.
Ao vagar de dois anos, em 1931, observando a sua vida paroquial e os rumos assumidos pelo irmão sacerdote, que era religioso na África, o jovem Pe. Marcel Lefebvre solicita ingresso nos Espiritanos (Congregação dos Padres do Espírito Santo), fazendo um curto período de noviciado e profissão religiosa. Seu sincero desejo era o de auxiliar as populações autóctones do continente africano, especialmente o povo do Gabão (sua primeira missão neste continente), a alcançarem a conversão e a salvação pela Igreja Católica.
Na África, pouco a pouco, adquire conhecimento sobre o continente, migrando internamente por diversas ocasiões a fim de atender a chamados insistentes de fiéis e bispos que solicitam a preciosa ajuda dos Padres Brancos (referência ao hábito missionário da congregação). Pe. Marcel auxilia na criação de seminários, na condução de dioceses, nos trabalhos missionários mais estafantes, adquirindo desde cedo uma fama de grande laborador pela causa de Deus. Chamado de volta à França em 1945, no período final da II Guerra Mundial e pouco tempo após o falecimento de seu pai e de sua mãe, lá é nomeado diretor do Seminário de Filosofia de Mortain, notabilizando-se perante a Santa Sé em virtude dos resultados que colhe em seus trabalhos.
Tradidi quod et accepi".
I Cor.11, 23
“Transmiti o que recebi”.
É de Roma, mesmo, que vem o pedido para que o Pe. Marcel assuma o vicariato apostólico de Dakar, na África, recebendo este encargo do Papa Pio XII em 1947. Para tanto, a consequente sagração episcopal pelo alto cargo que ocuparia lhe chegou no dia 18 de setembro de 1947, ocorrendo em sua paróquia natal de Nossa Senhora de Tourcoing pelas mãos do já Cardeal Liénart, bispo de Lille. O bispo Dom Marcel Lefebvre assume seu cargo em Dakar no dia 16 de novembro de 1947, tendo sob seus cuidados um crescente afluxo de fiéis. Surpresa maior, como ele relatará em seus escritos, é quando lhe chega a incumbência, um ano depois, de ser Delegado Apostólico para toda a África Francesa, o que à época englobava 18 países africanos. Uma ação misteriosa da Providência. Ainda no Dakar recebe a carta de eleição papal para ser o primeiro Arcebispo de Dakar, onde Dom Marcel é conduzido pelo Cardeal Tisserant no ano de 1955.
Em todos estas ascensões de cargos, permaneceu o duplo caráter de D. Marcel: um bispo de lã, sensível à fraqueza dos homens, e um bispo de ferro, empenhado em fazer brilhar a verdade sobre a miríade de erro sempre defrontada. Mas hoje, sobretudo, podemos dizer que sua nota principal foi a caridade, buscando atender a todos os apelos espirituais e materiais que lhe chegavam, sempre do melhor modo possível. E foi pela caridade que seu caminho de prudência assumirá nova largura e profundidade com os acontecimento que virão mais tarde.
Um segundo capítulo na vida de D. Marcel inicia-se a partir de sua chamada para a Comissão Preparatória do Concílio Vaticano II, em 05 de junho de 1960. Ao mesmo tempo, nomeado Bispo de Tulle, na França, em 1962, D. Lefebvre aceita o encargo, que representa seu rebaixamento de função, na alegria em poder trabalhar mais pelos novos diocesanos, que já viviam intensa crise espiritual no interior da França. Dezenas de dioceses haviam sido inauguradas na África Francesa pela sua ação. Mesmo antes de completar seis meses no encargo diocesano, é chamado em Roma após ser eleito Superior Geral dos Padres do Espírito Santo, também recebendo o encargo simbólico da Arquidiocese de Synnada, na Frigia (atual Turquia). Voltando-se ao Concílio neste ínterim, junto a numerosos bispos, trabalha com afinco em todas as sessões, aos poucos percebendo acontecimentos perturbadores no seu transcorrer, especialmente uma onda modernista/liberal que não apenas é tolerada como difundida por meios de propaganda bastante avançados.
Ainda dentro do Concílio, D. Lefebvre, D. Proença de Sigaud, D. Castro Mayer e outros bispos pertencentes ao Coetus Internationalis Patrum organizam-se da melhor forma possível a fim de barrar a chamada Corrente do Reno, que era uma poderosa organização de bispos encabeçada por alemães, holandeses e belgas na propagação de uma nova doutrina modernista. Permitiu, entretanto, a Providência que o CVII fosse tomado de roldão e inúmeros documentos dúbios ou liberais fossem publicados. A princípio, para os bispos do Coetus, não fica clara a extensão do problema, mas apenas com o vagar dos anos, quando inúmeros escândalos e uma organizada obra de demolição põe a Igreja em permanente agonia.
Aos poucos, a partir de 1970, Dom Lefebvre inicia a obra que mais tarde se chamará de SSPX, ou, em português, FSSPX - Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Seu intento foi o de acolher um grupo inicial de seminaristas que buscavam boa formação e lhe solicitavam ajuda por não mais encontrarem seminários que o fizessem naquele momento. E o que a princípio era uma pequena casa de formação começa a tomar corpo, saindo de Friburgo (Suíça) para Écône (Suíça), obtendo a aprovação de Dom François Charrière, bispo de Friburgo e sendo ratificada pelo Prefeito da Sagrada Congregação para o Clero, o Cardeal Wright. O seminário, então, cresce sem parar e aos poucos atrai a ojeriza de bispos europeus, que enxergam na instituição uma resistência sólida contra a nova doutrina romana.
Em 06 de maio de 1975 o novo bispo de Friburgo retira a autorização para o funcionamento do seminário e, novo golpe, em 1976 D. Lefebvre é suspenso a divinis pelo Papa Paulo VI em razão da continuidade de ordenação de sacerdotes apesar dos vetos da diocese de Friburgo. Com o passar dos anos, D. Lefebvre continua a expandir seu seminário, contando ano a ano com o ingresso de dezenas de seminaristas, ao mesmo tempo em que consolida sua amizade com D. Castro Mayer, que também no Brasil conduz sua diocese no mesmo espírito de conservação do Sagrado Depósito da Fé. Neste período espera receber de S.S. João Paulo II, novo pontífice, o auxílio na missão de resguardar a Tradição, o que não alcança, especialmente em razão dos impedimentos colocados pelo Prefeito da Congregação Para a Doutrina da Fé (não mais Santo Ofício), o Cardeal Ratzinger.
O acontecimento do Encontro Ecumênico de Assis, no ano de 1986, demonstra cabalmente que Roma não apenas desconsidera sua missão divina de apregoar a Verdade, como continua a estimular o erro liberal, o que faz D. Lefebvre insistir com maior determinação em garantir a continuidade da Tradição através de conversações com a Santa Sé, que por sua vez não lhe concede garantia alguma de imunidade à FSSPX. Neste propósito, com o objetivo de assegurar a conservação da doutrina católica integralmente, D. Lefebvre sagra, com o apoio de D. Castro Mayer, quatro bispos em 30 de junho de 1988, na cidade de Écône.
Ciente de suas responsabilidades e feliz pela boa ação, D. Lefebvre, padecendo de séria enfermidade, falece em 25 de março de 1991 no Hospital de Martigny, sendo velado e enterrado no próprio seminário da FSSPX. Deixou para trás uma miríade de sacerdotes, casas religiosas masculinas e femininas, igrejas, capelas, faculdades, escolas, missões, seminários e pré-seminários, mas, sobretudo, graças a seu valoroso trabalho temos hoje, indiscutivelmente, a sobrevivência da Tradição Católica, que teria sido totalmente eclipsada não fosse o trabalho lento e silencioso de D. Lefebvre e D. Castro Mayer nas últimas décadas.