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Singularidade Do Cristianismo



Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 12 de agosto de 1971


NUM de seus mais belos livros The Everlasting Man, que o editor com toda a razão diz ser "more thrilling than any novel", Chesterton, no apogeu de seu gênio rutilante e explosivo, deixou-nos um acervo de ideias onde cada uma parece responder com suas cintilações à sorna de espantosos disparates e tolices com que o mundo, sai século, entra século, pretende empoeirar, esconder ou destruir o Cristianismo. Com sobeja razão disse desse livro um crítico: "É um poderoso e belo livro. Para realizá-lo assim, formoso e poderoso, o poeta e o soldado em Mr. Chesterton se coligaram, e juntos conseguiram dar-lhe as cores, a fúria e a fé romântica das cruzadas".


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UMA das tolices de todos os tempos que tentou atravessar-se no caminho do poeta-soldado e cruzado foi a que hoje tem calorosa acolhida no mundo católico, e especialmente nas casas religiosas que, por isso mesmo, deixaram de ser religiosas. Eu a definiria assim: ideia da não singularidade do cristianismo. E Chesterton a derruba num só golpe: "aqueles que veem Cristo lado a lado com outros mitos similares, e sua religião lado a lado com outras religiões, estão apenas repetindo desgastadas e sujas fórmulas que são desmentidas pela fulgurante evidência dos fatos".


EM outro lugar Chesterton retoma esta ideia que anima toda a sua estratégia apologética: "escrevi este livro apenas para mostrar que o Cristianismo, surgida em certa altura da história, tem todas as características de uma coisa única. Não se parecia com nenhuma outra coisa; e quanto mais o estudamos menos se parece ele com outras coisas". No sentido mais absoluto do termo, o cristianismo foi uma coisa nova na história; é a única coisa nova, não apenas no seu surgimento histórico mas em cada momento em que o considerarmos.


EM torno de mim, no meu escritório, estão os objetos familiares, os livros amados e os livros detestados, as cartas lidas e ainda não respondidas. E diante de mim a mesa desarrumada dá-me boa imagem das coisas velhas que seguem a lei da matéria, a lei do envelhecimento. Se me adornarem a jarra com uma rosa insolentemente jovem e formosa, ainda assim já adivinho atrás da seiva a corrupção e atrás do viço o desbote. Tudo em torno de nós envelhece irresistivelmente. Sobre todas as coisas desce a névoa crepuscular de um desgaste universal. A grande e bela criação de Deus segue sua sorte de criatura sujeita a todas as vicissitudes. Mas suas abóbadas fechadas sobre si mesmas, econômicas, zelosas de suas causas segundas, de seus ciclos e epiciclos, um dia foram atravessadas, e um dardo de luz trouxe a esta criação a notícia de uma nova criação, e o anunciador desta boa-nova é o Verbo Divino que se encarnou para nossa salvação e que estará sempre entre nós, na sua Igreja, no meio de nós como o Novo absoluto e perpétuo que levou São Paulo a exclamar, ébrio de graça divina: quem está em Cristo se torna nova criatura... Vede! Tudo é novo! (II Cor. V, 17.)


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A LEITURA, mesmo distraída, do Antigo Testamento revelará a chave, o segredo que troveja pela voz dos profetas, e que grava nas pedras: Ele é Um, e não admite outros deuses diante de sua Face. Mas é no Novo Testamento que eclode, explode, o Novo absoluto, o Novo eterno; mas também é aqui que, por um paradoxo da Encarnação, se torna mais velada a face de Deus. A Trindade é, sem dúvida alguma, o mais majestoso, o mais profundo dos mistérios; mas a Encarnação é o mais perturbador, o que mais induziu a heresias e erros que, no fundo, querem sempre a mesma coisa: reduzir o Cristianismo a um humanismo. Jesus passou três anos a ensinar que o cristianismo não é um humanismo. Todas as suas respostas têm sempre o mesmo cunho de quem não aceita o plano e os termos em que é feita a pergunta. Ao longo de vinte séculos a história do cristianismo oscila sempre entre dois acervos, dois modos de capitalizar e de guardar o tesouro das palavras de Cristo. De um lado está o cabedal de sabedoria e de santidade guardada no seio, no interior, no lado de dentro da Igreja, e de outro lado estão todas as tentativas feitas, no exterior da Igreja, por homens que se julgavam tanto mais eclesiais quanto originais.


A TENDÊNCIA natural do homem, o peso do corpo e as feridas da alma levam-no sempre a querer fazer do cristianismo um humanismo, e do candente amor de Deus uma filantropia.


QUANDO os homens, num relance, desconfiam da absoluta e insólita novidade do cristianismo, duas reações opostas e violentas podem surgir: a violência de um vislumbre de amor divino precipita a alma agradecida e maravilhada, no meio da Igreja, in media Ecclesia; a outra violência, ditada ao orgulho por Satã, fará dessa alma um rebelde que sairá pelo mundo a anunciar que o cristianismo é não somente um humanismo, mas também, e sobretudo, um humanismo ávido de cooperar com o desumaníssimo que não admite sequer o Nome de Deus, nem admite que seus membros humanos queiram ser especificamente humanos.


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PENSANDO na explosão de imbecilidades que encheu nosso século graças aos tão festejados meios de comunicação, repassando na memória as frases infinitamente tolas que foram pronunciadas dentro do chamado catolicismo "progressista", vêm-me à memória, irresistivelmente, as palavras com que Jesus diz que não foi para dirimir estas questões que Ele nasceu de Maria Virgem, padeceu sob Pondo Pilatos, foi morto e crucificado. Através dos abismos ouço esta resposta de Jesus aos desajustes humanos: "Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós outros?" (Luc, XII, 13.)

 
 

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