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Santa Catarina de Sena

Atualizado: 31 de jul.

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Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 02 de maio de 1974


ANTES DO FURACÃO pós-conciliar, a Igreja comemorava em 30 de abril a data do nascimento no céu de Catarina de Sena que, nos tempos tormentosos do grande cisma do Ocidente, quando os papas eram exemplos de fraqueza, foi ao contrário um exemplo de santidade. Nas terras de Itália daqueles dias de obscuridades e fraquezas, foi um sulco, um risco de fogo, um jato de sangue. Um século antes de Jeanne d'Arc, Catarina Bennicasa, 25ª filha de um tintureiro de Sena, iluminava a história do heroísmo cristão representando na graça do sexo dito frágil maravilhoso modelo de Força. Não deixa de ser gracioso paradoxo essa escolha que Deus faz de tais flores para nos serem exemplo de bravura, resistência, coragem até os mais altos graus de heroísmo. Nossos grandes atletas, nossos grandes soldados, nossos grandes heróis foram meninas e moças, lírios transformados em louças, virgens integradas em guerreiros.


EM CATARINA DE SENA esse contraste glorioso não se exprimiu apenas num só ato fulgurante de testemunho, como Perpétua quando se ergueu no meio do circo romano com a túnica dos mártires, ereta, frágil, invencível, "matrone du Christ, mignone de Dieu", nem se traduziu em gloriosos combates para enfrentar os inimigos da pátria e os mais pérfidos inimigos da Igreja como Jeanne d'Arc. O testemunho da Força cristã foi durante toda a vida de Catarina empregado no cuidado constante de encorajar os padres tíbios de incitar ao combate os bispos pusilânimes, de denunciar os pérfidos como "demônios encarnados", e junto a dois papas indecisos e fracos foi zelo quotidiano de ensinar a serem homens. Seu diretor espiritual, Frei Raymundo Capua, nessa direção da coragem foi sempre seu discípulo maternalmente dirigido e revigorado. A virgem senense, que aos 21 anos celebrou as bodas místicas com Jesus, passando desde então da fase virginal à fase maternal e fecunda de sua extraordinária vida, coube a missão de difundir coragem, de revigorar os ânimos, de despertar o brio das almas cristãs amolecidas. Seus mais notáveis milagres foram vitórias sobre covardias de papas, de religiosos, de leigos. Transfusora do Sangue vivo da Salvação, ela reerguia os vencidos, os medrosos, e trazia sempre em seus conselhos a cor viva do Sangue. Dificilmente escrevia duas linhas nas milhares de cartas sem que jorrasse a palavra Sangue.


FOI UMA MENINA pobre, 25ª filha de um homem simples e de uma boa italiana que ao cabo de muito falatório converteu-se em sua filha e passou a dar-lhe o nome de Mama Caterina que a moça de 24 anos recebia com toda a naturalidade da fileira de gente de todas as idades e condições sociais que não a largava dia e noite. Vale a pena ler e reler histórias, anedotas, fioretti de Santa Catarina de Sena para reaprender a ser gente, coisa que dia a dia vai se tornando difícil no bravo mundo moderno, e penoso no moderno mundo católico.


O QUE NOS FALTA hoje, depois do furacão pós-conciliar, é a presença viva e catalisadora da santidade que comece por realizar o primeiro milagre de acesso ao Vaticano, que em nossos tempos tem sido regularmente bloqueado a qualquer clarão que de longe lembre o rubro vivo do Sangue de Santa Catarina de Sena. Vivemos uma época de desfibrados, de emasculados, e de convertidos ao culto duma espécie de pacifismo que consiste essencialmente no horror ao combate, sobretudo se na razão desse combate se entrevê algo de elevado e de heroico. São Catarinas como a de Sena que nos fazem falta hoje em Roma, e no resto do mundo.


TRAGO NESTAS LINHAS minha contribuição anual de uma devoção que anos atrás me unia aos frades do Convento Dominicano do Leme, que mais de uma vez me convidavam para lhes dizer minha veneração pela grande "mantellata". Passaram-se os anos. Muitos daqueles frades passaram. Evoluíram. Estão a convergir para o "ponto ômega" ou, como tanto dizia Catarina de Sena, estão ocupados em comer o próprio vômito. Os que resistem, os que sofrem, os que permanecem, não terão coragem de falar em Catarina de Sena, porque lhes falta a própria Catarina, viva, ereta, eloquente, a lhes ensinar a serem homens. A última notícia relativa a Santa Catarina de Sena, vinda de dominicanas, que me chegou às mãos, foi uma carta escrita por uma religiosa brasileira de um convento na Itália. Foi há cerca de oito ou dez anos. Eu escrevera contando a história do jovem Tuldo, cuja cabeça decepada Catarina recebe no regaço elevando ao céu um grito de quem tem direito de reclamar do Esposo a recíproca de seu amor: Io voglio!


ESSA HISTÓRIA de fim de idade média, história de santidade e de sangue, chegou-me de Itália comentada por uma religiosa moderna que tentava dizer frases irônicas de minha devoção. Admirava-se a jovem moderna dominicana que eu, tão estudioso, não tivesse compreendido o fundo de paranoia visível naquele "lo voglio!". Essa religiosa assinava nitidamente a sua carta, e então eu pude ver com assombro que a pobre pateta, num instante de evidente assomo paranoico, tivera anos atrás a coragem de escolher para a vida religiosa este nome que hoje a esmagava: Catarina de Sena.

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