Quando um poeta nasce
- Mosteiro da Santa Cruz
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Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo em 18 de abril de 1970
Eu que trago em mim mesmo sequestrado o poeta menos do que menor que não sou e não fui porque o não deixei nascer, ou ainda o trago em mim mesmo natimorto — não posso ver um poeta nascer sem pular como os reis magos quando reencontraram a estrela perdida.
(Videntes lutem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde, diz meu velho missal onde vinte séculos são derrotados pela pressão assassina de vinte dias de um hoje feroz).
Deixemos o missal e a querela entre a eternidade e o tempo, e entreguemo-nos de corpo inteiro, ou de corpo e alma se preferes, ao espetáculo sem igual do poeta que nasce numa espuma de mar imensamente escuro. Nasceu. Brilhou. E eu que por dever de estado pus avental na nobre pequena poesia que em mim mesmo trago desde o útero sombrio, desde o encontro aleatório e lotérico dos gametas; eu que a fiz serva, ancila theologiae, e até ancila da eletrônica que ensinei... Sim, porque pelas frestas e brechas e fissuras das aulas e das conferências austeras, a prisioneira fugia, dava três giros no ar, fazia sorrir os alunos, e depois, submissa, serva, ancila de tudo e de todos, voltava a aprisionar-se dentro do pobre sábio que escondia sua autêntica e virginal loucura. E eu que sou sóbrio por dever de estado, que devo ser didático a mais não poder, ainda que a poesia prisioneira me estale as costuras do coração, não posso ver um poeta, um vero poeta nascer, sem pular e gritar, sem chorar e sem rir da mais pura alegria composta com a mais pura das dores.
Ora, então não sabias que a poesia dói? Dói. Dói porque não é tudo o que é e que poderia ser. Dói porque nos acorda para uma nostalgia infinita. Dói. Dói. Dói. E quanto mais bela, mais dói, porque chega perto do essencial, do absoluto e não consegue condensar em poucas palavras mendigas a infinita ambição do poeta. E então, dói. E então dá vontade de chorar e de rir.
Eu que trago o delírio condicionado, que tenho o louco preso a sete chaves, dos 7 deveres de estado; eu que estou comprometido, com um noivado no céu, que fiz votos de comer cinza e prender minha música interna, ou que nasci pequeno demais, ou que um dia com arroubo dos cromossomos de meu avô espanhol incendiei minha esquadra de sonhos impossíveis, eu que cheguei a ultrapassar a idade do século e me deixei engessar em cargos oficiais e envelheci sem permitir que o louco desvairasse e que o lírico cantasse como pudesse cantar, pelo gosto absoluto do puro cantar, não posso ver um poeta nascer sem gritar de alegria e de dor, sem chorar e rir de gratidão.
Cante e brilhe coração
[alheio
tudo o que pode o
[nosso cantar.
O que é um poeta? É uma boca com hálito de infinito, que se abre para dizer o que não dizem as vozes prisioneiras. Fala, fala boca generosa! Nós outros (multidão) agradecemos a Deus o poeta que nasce.
Agora, em língua mais sóbria, quero comunicar ao leitor que, para mim, nasceu hoje o poeta Álvaro Pacheco que lembra ou cheira a Fernando Pessoa, Cassiano Ricardo e Jorge de Lima, sem deixar de ser o puro ele-mesmo. Recebi A Força Humana, que não é o primeiro livro do poeta. Já publicou outros que procurarei.
Tenho a impressão primeira, instantânea de estar vendo um poeta nascer (para mim). E não ignoro os riscos terríveis que corro com estas linhas de Apologia. A poesia é a mais barata das artes; amanhã ou depois meu pobre e limitado escritório não terá lugar para uma cadeira, porque eu cometi a imperdoável imprudência de aplaudir um poeta, um vero poeta que canta o antigo e o moderno, o efêmero e o eterno na mesma nossa língua em que cantou Camões. Pelo amor de Deus! Eu não sou crítico; não sou sequer homem de letras. Sou apenas um professor que ainda não se cansou de ensinar o que pode ensinar. Pelo amor de Deus, poetas novos, poetas ameaçadores, poetas novíssimos, poetas avançados, inovadores, revolucionários, poetas nunca vistos, deixem-me em paz que não sou crítico, nem sou propulsor de gênios, lançador de prodígios, ou descobridor de joias. Deixem-me escrever de vinte em vinte anos, ou de mil em mil, sobre um poeta que nasce. Hoje anuncio Álvaro Pacheco. O próximo tem hora marcada para 1990.