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As fronteiras da Igreja

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Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 12 de março de 1970


Para nós a Igreja é, sempre foi e sempre será a sociedade sobrenatural, visível, hierárquica, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo para nossa salvação. A essa definição clara demais, se assim podemos dizer, a tradição católica sempre acrescentou nomes metafóricos que, embora menos precisos, têm a vantagem poética de acrescentar àquela outra uma dimensão e uma ressonância de mistério, sem a qual não poderemos ter uma ciência aproximada sequer dessa obra capital de Cristo. A constituição Lumen Gentium do Concilio Vaticano II, no seu primeiro capítulo, nos dá os vários e numerosos nomes metafóricos da Igreja, e deixa claro, com os melhores eclesiólogos, que o nome Corpo Místico de Cristo é um dos que melhor convém à Igreja. Trata-se de uma entidade sobrenatural configurada pelo Verbo Encarnado. Sua alma iniciada é o próprio Espírito Santo, sua alma criada ou seu sangue é a Caridade, e seu corpo somos nós, membros da Igreja, e são as instituições que nos agrupam hierarquicamente em funções diferentes segundo a clássica imagem deixada pelo Apóstolo Paulo.


O segundo capítulo da Lumen Gentium dedica-se ao corpo da Igreja, e originalmente era "Dos membros em geral", tendo sido posteriormente substituída por Povo de Deus. O termo é belo, tem excelente fundamento nas Sagradas Escrituras, mas foi imediatamente desvirtuado e aproveitado pelos "progressistas" que passaram a inculcar a falsa sinédoque, pela qual esse termo seria sinônimo de Igreja, e não de Membros ou Corpo da Igreja. O furor democratizante apoderou-se da oportunidade trazida pelo termo eletrizado com a palavra "povo". Os dominicanos da decadência, ou do apodrecimento da venerável Ordem dos Pregadores, se puseram em campo para espalhar no mundo a nova Igreja sem fronteiras. Para ser mais exato, devo lembrar que foi o jesuíta De Lubac, também animador do teilhardismo, um dos autores que lançou com grande talento a ideia de salvação geral, e portanto a ideia de Igreja sem fronteiras. Mais recentemente, na França, foi o prestigiado teólogo Yves Congar quem levantou essa bandeira: e aqui no Brasil foi o dominicano Bernardo Catão, provincial, o mesmo que abriu as portas das casas dominicanas aos rapazes da associação comunista A.P. e que nessa mesma ocasião deixou a ordem, deixou a Igreja e mudou de estado civil. Como para ele a Igreja não tem fronteiras, ele foi andando, andando, sem perceber talvez que saía da Igreja, ou talvez convencido do contrário, já que a Igreja não tem fronteiras. Entre os nomes clássicos dados à Igreja temos três em que o primado da forma é bem acentuado: Corpo místico, Casa de Deus, Jardim Fechado. E se a Igreja não tem forma, não tem princípio determinador, e se seus membros não carecem de norma de inclusão, então a Igreja, metafisicamente, será um puro múltiplo, ou não será, porque até hoje ninguém conseguiu acrescentar às propriedades transcendentais do ser o "múltiplo".


Mas essas normas, ou essas fronteiras, como tão bem nos ensina mais de uma vez o grande Cardeal Charles Journet, não estão aqui e ali no espaço: as fronteiras da Igreja passam por nossos corações. Nossa vida, nossos atos são divididos, e ora nos norteamos pela vontade de Deus e ora nos norteamos pela vontade própria. De muitos modos gradativos pertencemos à Igreja como membros mais ou menos perfeitos e mais ou menos permanentes, mas os próprios membros permanentes e razoavelmente orientados, enquanto não chegam à santidade perfeita, não são membros da Igreja segundo tudo o que pensam, fazem e amam. O que puder dizer, como Paulo, "não sou eu que vivo, é o Cristo que vive em mim", esse é o membro perfeito da Igreja peregrina.


Nós outros, imperfeitos, imperfeitíssimos, pertencemos à Igreja, pelo desejo geral de fidelidade, mas fugimos de nossa mãe pelos atos em que a vontade própria se sobrepõe à vontade de Deus. Já não se pode dizer o mesmo daqueles que se norteiam pela ideia de construir uma Nova Igreja, ou um Novo Cristianismo como explicitamente desejou Teilhard de Chardin, e como dizem todos os dias os progressistas cansados da velha madre caduca que enviou seus melhores filhos ao Céu, isto é, à Visão de Deus três vezes santo, em vez de enviá-los à Lua. Desses podemos dizer que são membros “egredientes”, membros que se afastam, que deixam a Igreja e que veem nisto um progresso.


* * *


Apliquemos agora às múltiplas instituições que formam o Corpo da Igreja a mesma ideia de fronteira — ou de mania de inclusão. Por mais oficial e elevada que seja a nomeação dos numerosos grupos, comissão e subcomissões que hoje mais do que nunca pululam na Igreja, subsiste o decisivo critério: só estarão efetivamente enxertadas no tronco da vida, e só terão a seiva santa nos seus galhos, na medida de sua fidelidade à doutrina da salvação. E como vivemos dentro de um terremoto espiritual, não é de estranhar que muitas dessas instituições em vez de integrarem o Corpo Místico de Cristo se esforçam por desintegrá-lo. A Comissão France-Amerique Latine, presidida em França por um Bispo, creio que de Orleães, é um exemplo: esse órgão que tem enviado ao Brasil os padres comunistas ou marxistas, ou simplesmente progressistas, como os de Belo Horizonte, e como o belga Comblin, inspirador do Documento do Encontro de Medelín, que foi outro exemplo de fenômeno mais secular do que católico. Outro exemplo são as conferências episcopais, que vêm destruindo a instituição de direito divino, o Episcopado, em favor de uma Máquina onde dificilmente se pode imaginar que corra o Sangue preciosíssimo de nossa salvação.


Outro exemplo de instituição comicamente exterior à Igreja por todos os sinais visíveis é a Comissão de Justiça e Paz de que voltaremos a falar em próximo artigo.


Agora, para arrematar o de hoje, lembro que a carta do Bispo D. José Carlos Isnard, OSB, tinha, como argumento principal, a perfeição, a catolicidade e a santidade das instituições de onde procederam os disparates formulados sobre a essência da Missa, e por nós criticado.


Bem quereríamos que o Bispo tivesse toda razão e que aquelas instituições tivessem virilmente enxotado os maus elementos, e não é para outro resultado que batalhamos. Infelizmente salta aos olhos que aquelas instituições são manobradas pelos inimigos da Igreja, e que o Bispo Isnard, na melhor das hipóteses, está dormindo como lá dizia o profeta na passagem que citei na semana passada.


P.S. 1) Sobre o problema de "quem é membro da Igreja?" recomendo a leitura de L'Église du Verbe Incarné, de Charles Journet, no vol. II, página 872 a 1216. A constituição Lumen Gentium tocou de leve no assunto, mas no tão explorado cap. II deixou o suficiente para esmagar a falsa doutrina da Igreja sem fronteiras. No tópico (9) lemos esta nota essencial do povo messiânico: "Tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito Santo como em um templo."


2) Tendo citado de Lubac em seus passos infelizes, é de justiça acrescentar que hoje ele chora e se lamenta com os desatinos que vê. Mas ainda não li nenhuma retratação sobre o que disse para impulsionar a promoção de Teilhard de Chardin.

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