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O Quarto Mandamento



Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 03-07-1973


UMA primeira vista d'olhos sobre o panorama da atualidade, em todo o mundo, nos dá a impressão de uma efervescência sem regras nem rumo. A história, segundo esta primeira impressão, seria uma agitação errática e desordenada de vidas que querem viver seu fugaz momento. Movimento bronwniano de pó de vidas.


UMA análise mais atenta revela-nos, indubitavelmente, linhas-de-história de marcada ascensão humana, e portanto de marcado propósito de procurar um mundo melhor. Em que sentido? O único que nos parece incontrovertido é o do progresso, pela ciência e pela técnica, do domínio do homem sobre o mundo exterior e inferior. Há um indiscutível e admirável progresso nas ciências e nas técnicas. O homem já vê a distância, e já pôs o pé na Lua. Nos países mais avançados naquela linha já se entrevê uma melhor divisão dos bens materiais a despeito da atoarda que ainda fazem os revolucionários que assim veem escapar-lhes das mãos o trunfo da miséria com que exploram a miséria.


O que não se vê, por mais que se queira abrir créditos ilimitados aos fatores materiais da vida humana, é um sinal de verdadeira ascensão humana na efervescência do momento histórico. Ao contrário disso veem-se tendências contestatárias, torrentes de recusa e de protesto atiradas contra o passado, contra a tradição, CONTRA O PAI. As novas gerações são solicitadas a manifestarem sua maioridade com a bofetada na mãe e a morte do pai.


ESSA estranha tendência contraria a lei natural, contraria o próprio interesse do homem, trabalha para seu rebaixamento e sua perdição. Não se poderia, pois, pensar que tal inclinação seja normal, e faça parte dos dinamismos da história.


EM NOSSOS dias essa aberração anti-histórica, anti-humana, aparece claramente como obra de uma contracorrente atuante ao arrepio dos mais altos interesses humanos. Essa contracorrente, indecentemente atuante em nosso tempo, vem de movimentos históricos organizados, e reativados nos últimos quatro séculos, com os quais uma caravana de dementes oferece a miragem de um mundo melhor desde que lhes permitam reduzir a pó este mundo mal feito que recebemos de nossos pais.


QUANDO Largo Caballero tomou as rédeas da Revolução na Espanha em 1936, proclamou: "Nosotros no dejaremos pedra sobre pedra de esta España, que devemos destruir para rehacer la nuestra!" Este é o ideal central da Revolução: destruir tudo, voltar à estaca zero para então recrear ex-nihilo. Seus dirigentes são deuses.


EM NOSSOS dias ganham destaque, na turbulência dos eventos, as linhas de contestação do Pai.


* * *


ORA, o cristianismo é, essencialmente, a religião em que Deus se revela como Pai. Desde o Antigo Testamento se vê, passo a passo, que a preparação para o Advento do Senhor é uma tradição de pai para filho: "Escutai, filhos, a instrução de um pai (...) Eu também fui um filho para meu pai, um filho dócil junto de minha mãe..." (Prov. IV 1 a 2). "Não despreza, filho, a correção de Javé, e não tenhas aversão por seus castigos, porque Javé castiga aquele que ama, como um pai castiga o filho predileto" (Prov. III, 11). E em Isaías: "Vós, Javé, sois nosso Pai, nosso Redentor. Este é o vosso nome desde tempos imemoriais. Por que, Javé, permitis que andemos errantes longe de vossas vias, com o coração endurecido contra o vosso temor?" (Is. LXIII, 16, 17).


MAS é no Novo Testamento que ganha todo o esplendor a paternidade de Deus. Desde os abismos de sua vida íntima e trinitária, Deus é Pai, e toda a vida divina procede do Pai e volta ao Pai. Analogamente, para arremate perfeito da Criação, Deus quererá para si todas as criaturas, e muito especialmente quererá a volta daquela criatura feita à sua imagem e semelhança. E envia ao mundo seu Filho Unigênito para resgate dos homens que doravante tornados filhos adotivos no Sangue do Unigênito, possam dizer com pleno direito Abba Pai. E é o próprio Jesus, num dia memorável entre todos os dias, que ensina aos homens a língua com que devem falar a Deus: "Pai Nosso". Nessas duas palavras estão concentrados todos os mandamentos, porque a primeira diz Pai, e dirige-se a Deus, enquanto a segunda diz nosso e derrama-se em torno de nossos irmãos.


O MUNDO moderno, nos seus pruridos revolucionários, é anticristão porque é todo orientado por uma soberba rejeição do Pai. E para maior escárnio inventaram uma fraternidade revolucionária baseada na decapitação do Rei, já que não tinham à mão a própria cabeça do Pai que está no Céu. Não é por mero acaso que a Revolução Francesa escolheu a linguagem das decapitações. Não é por mero acaso, também, que os revolucionários da nova Igreja, dita progressista, exaltam o ídolo do "jovem" liberado definitivamente do 4º Mandamento.


NÓS sabemos que toda a grande tradição católica tirou do 4º Mandamento as lições relativas ao princípio de autoridade e de ordem social. E assim, a moderna contestação do 4º Mandamento, pregada abundantemente na era pós-conciliar, não apenas dissolve a família como também a pátria. Toda a noção de ordem, sem a qual não há sociedade politicamente organizada e orientada para o bem-comum, prende-se à fundamental relação Pai-Filho, que a Revolução quer destruir.


E é com infinita tristeza, com cansadíssima tristeza que vemos, mais uma vez, o espetáculo da degradação e da impotência dos novos bispos, ou dos bispos atualizados, que já não sabem mais nada do tema central de toda a Revelação. Agora mesmo, na nova reunião ou congresso de bispos americanos falou-se no problema da família na América Latina, e logo surgiram frases estereotipadas: os pais precisam dialogar com os jovens, nós temos confiança no jovem, e outras de mesmo quilate. Terá a Igreja Católica perdido o seu diapasão e esquecido o 4º Mandamento, terão seus hierarcas perdido o gosto de dizer Pai, e o gosto de dizer "filho, inclina o ouvido e escuta as palavras de um Pai amoroso..."?


QUEM passou a vida inteiramente a ler e reler as palavras de Deus nas Sagradas Escrituras, ou as palavras dos santos na vida da Igreja, não reconhece a mesma Voz nesse linguajar das conferências e congressos episcopais. Mais depressa reconhece o sotaque do velho conhecido lobo.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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