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O Fenômeno



Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 17-03-1973


ANTES de investigar a causa ou as causas eficientes, que produziram em pouco mais de 10 anos uma desfiguração dos sinais visíveis da Igreja católica convém investigar e analisar a causa formal intrínseca, isto é, convém saber em que consiste essa desfiguração. A versão progressista, que atribui a uma natural evolução e a uma benéfica abertura para o mundo a moderna figura da Igreja não se sustenta nem em sua lógica interna porque o fenômeno que temos diante dos olhos é uma decadência, até no sentido mais grosseiro expresso pela acelerada diminuição de vocações tanto no clero secular como no regular. Para quem ainda creia em tudo que críamos poucos anos atrás, isto é, para o católico sem adjetivos, a figura que tem diante dos olhos pode ser assim descrita: 1) ainda há um núcleo de pessoas que continuam a crer nas mesmas verdades de Fé, independentemente da ida do homem à Lua que em nada, absolutamente nada obriga a retocar sua crença na Santíssima Trindade, na Encarnação do Verbo, na Igreja una, santa, católica e apostólica, e na ressurreição da carne; 2) na área mais afastada desse núcleo estão os chamados "progressistas" ou secularizantes que se divide em duas nitidamente diferentes mas unidas por uma zona intermediária. Na área extrema ou mais exterior estão os clérigos que não se embaraçaram em escrever livros que já não são heréticos por serem heréticos praticamente em todos os pontos da dogmática católica, donde se conclui que não são divergentes ou desviados da Fé católica integral, são contrários ao todo: são a anti-Igreja. A zona mais dissimulada dessa faixa 2 é ocupada por eclesiásticos que, sem serem capazes de escrever desvarios poli-heréticos, todavia, toleram essa espécie. Tenho para mim que esses progressistas "prudentes" não apreciam com severidade os autores de tais obras. Se por exemplo um deles é Reitor de um seminário fará questão de colocar aqueles autores ao alcance dos noviços. Creio que eles pensam, se pensam, mais ou menos assim: — O Boff exagera... O Comblin exagera... D. Hélder é corajoso demais...


MAS não dão sinais de repulsa e indignação, e até quando têm o báculo na mão não o usam jamais nessa direção. Usá-lo-ão para exonerar três professores de alguma Pontifícia Universidade que tiveram a audácia imperdoável de apoiar um escritor que num artigo disse que o sol nasce a leste, que a água molha, que o fogo queima, e que a maioria dos bispos, com algumas santas exceções, está em todo o mundo promovendo a demolição da Igreja.


ANALISEMOS agora o relacionamento entre o núcleo (1) e a faixa (2) que acabamos de descrever sucintamente. Parece-me evidente que não têm o mesmo credo, logo não pertencem ambos à mesma Igreja una, católica e apostólica. A faixa (2) não esconde sua novidade, e seu empenho de enterrar a velha Igreja. Será preciso lembrar a algum bispo ou padre que a simples recusa de um só artigo de Fé atinge a razão formal e, portanto, atinge toda a Fé?


DUAS palavras sobre a faixa (3) intermediária ocupada pela maioria dos leigos que estranham as novidades, mas preferem não pensar muito nisso e continuam a ir à missa de preceito quer seja ela rezada por um padre que professa a Fé Católica (faixa 1) ou por um "padre" que não recita o Credo declarando-o já superado.


AGORA procuremos juntos, leitor amigo, a atitude que deve tomar um católico (faixa 1) em relação a um bispo progressista, audacioso ou prudente, da (faixa 2). Se esse infeliz católico-católico não tem suficiente doutrina não descobrirá que a faixa (2) não é apenas uma parte agitada e novidadeira da Igreja, e sim outra Igreja. E não descobrindo continuará a pensar que ainda deve respeito católico a bispos, arcebispos e cardeais anticatólicos.


A MAIORIA dos católicos leigos e muitos bons padres preferem pensar assim, por falta de um critério mais lúcido, ou até por comodismo.


SUPONHAMOS agora a clara tomada de consciência desse antagonismo infelizmente profundo e cruel entre a Anti-Igreja e a Igreja. Essa clara consciência se embaraçará em mil liames inferiores porque a mesma evidência não é oficialmente reconhecida pela Igreja. As autoridades eclesiásticas jogam o jogo do faz-de-conta, e os equívocos se agravam.


A POSIÇÃO de um leigo consciente se tornará extremamente penosa. Ele deverá doravante escolher com todo cuidado a missa a que assiste nos dias de preceito porque já tomou consciência do fato brutal: há missas rezadas por padres evidentemente inimigos da Fé católica. A trama de certezas morais com que costuramos quase todos os atos da vida, inclusive os religiosos, está abalada e em progressiva ruína. Cada dia que passa vemos mais uma capitulação que julgáramos impossível. E nós já não sabemos onde pisar, e a quem ouvir.


SE ACASO temos dons para bem aprender a doutrina e bem conhecer a voz e o cheiro da Igreja, e se além disso recebemos de Deus o dom de alinhar as frases com sentido e concatenação, que faremos nós quando vemos lá na área (2) algum figurão eclesiástico a fazer escândalos e a dizer enormidades, onerando com ambas as coisas a Santa Igreja? Parece-me claro que esse infeliz deve gritar, como gritavam os leigos simples nos tempos do arianismo: não foi esse o Evangelho que aprendemos! Deverá um soldado obedecer ao capitão que visivelmente bandeou-se para o lado inimigo? Deverá fazer-lhe continência se se encontrarem frente a frente?


ACONTECE, porém, uma coisa inevitável: o infeliz católico (1) que apontar erros e escândalos de "bispos" (2) será acusado por outros católicos (1) de estar em contradição pelo fato de desrespeitar a autoridade depois de proclamar que luta pelo princípio da autoridade.


PARECE-ME a mim que ainda o pior mal de nossos tempos, no que concerne à vida religiosa, é o prolongamento do equívoco e da hipocrisia: em nome da unidade da Igreja, não querem reconhecer que aqueles outros vivem a religião que inventaram e que devasta aquela de Jesus Cristo.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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