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O anel de Polícrates



Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 26-04-1973


ANOS atrás, nos primeiros do pontificado de Paulo VI, escrevi uma carta ao Papa. Começando por pedir-lhe a permissão de me inspirar em Santa Catarina de Sena para ter o atrevimento filial de falar-lhe sem vestir a nudez forte das palavras com o manto diáfano da hipocrisia. Queixei-me em seguida do que estava acontecendo na Igreja em nossas plagas. Entre muitas, queixava-me ao dolce Babo "de várias nomeações recentes vindas de Roma que não seriam piores se tivessem o sinete de Satanás". E terminava a carta com uma das fórmulas habituais de Santa Catarina: "Non dico più. Perdonate a me la mia grande presunzione. Umilmente v'addimando la vostra benedizione. Permanete nella dolce e santa dilezione di Dio. Gesù dolce, Gesù amore." Pedi a um bom amigo italiano que traduzisse o resto da carta e mobilizei a imaginação para encontrar meio de entregá-la na mão do Papa.


FOI no tempo do Congresso Eucarístico em Bogotá. O Papa viria à Colômbia, e viria de avião. Subitamente acudiu-me a ideia de um infalível portador: o Lenildo! Sim, o intrépido e invencível lutador de O Estado de São Paulo ia a Roma para voltar a Bogotá no mesmo avião do Papa. Um avião é menor do que um palácio ou um navio. Além de tudo, digam o que disserem as estatísticas, o avião anda lá por cima das nuvens, solto, suspenso em coisa nenhuma e ainda por cima projetado numa velocidade demente. Haverá sempre um certo vínculo de medo comum que irmana os passageiros num destino comum, que reduz os desníveis das hierarquias. Em poucas palavras: num avião, o Lenildo poderia entregar minha carta nas próprias mãos do Papa. Dito e feito. Lenildo Tabosa, pouco depois da partida do avião, aproximou-se do Papa e entregou-lhe minha carta, mas logo viu que Sua Santidade a dobrava ao meio e a passava ao prelado que o acompanhava. Quando soube os pormenores da cena fiquei certo de que minha carta não foi lida jamais pelo Papa. O secretário por alguma abertura do avião atirou-a ao mar e explicou a S. S. que se tratava de um louco.


ONTEM tive um sonho onde aparecia Polícrates, rei de Samos, sentado num trono e coroado com uma tiara. Estava preocupadíssimo com a guerra do Vietnam quando um prelado aproximou-se do trono e disse-lhe estas misteriosas palavras: "Santidade, está na sala de audiências, não sei como, um homem humilde e grisalho que se diz pescador e chamar-se Pedro. Ele insiste em querer falar com S. S. e diz que lhe traz de presente um peixe."


INTRIGADO, o Papa Polícrates mandou entrar o humilde pescador que trazia numa rede um robalo de bom porte. Aproximou-se, beijou respeitosamente a mão de Polícrates, evitando, porém, beijar o anel que ostentava um estranho sinete. Entregando o peixe nas mãos do Papa, o pescador suplicou: "Leve-o Santíssimo Padre pessoalmente ao cozinheiro, e ordene que ninguém o abra, e que o sirvam assado e inteiro. Sua Santidade encontrará dentro do peixe o que perdera e procura."


MAIS intrigado do que nunca, o Papa viu-se com o robalo nas mãos e notou que Pedro desaparecera. Levantou-se do trono e com grande admiração de quantos encontrava foi até a cozinha do palácio e recomendou ao cozinheiro que o assasse e o servisse inteiro.

À HORA do almoço, com assombro dos servidores, Polícrates de Samos abriu o grande peixe, e com surpresa encontrou um envelope dobrado e o anel que havia perdido: reconheceu-o logo pelo sinete.


Abriu a carta e leu: "... porque as últimas nomeações não seriam piores se tivessem o sinete de Satanás. Non dico piú. Per-donate a me la mia grande presunzione. Umilmente v'a-ddimando la vostra benedi-zione. Permanete nella dol-ce e santa dilezione di Dio. Gesta. dolce, Gesta, amore."


CONSIDEROU então o anel que usava e perturbado trocou-o pelo que achara dentro do peixe, e então, com o rosto iluminado de santa resolução, deu ordens que lhe trouxessem o báculo de Pastor, e então todos os sinos de Samos começaram a badalar...


Era o despertador...


PASSEI o resto do dia pensando no insondável mistério do mal e da permissão divina. Lembrei-me do bispo que, na véspera dos festejas do 450º aniversário da desobediência de Lutero, me visitara para me pedir a colaboração. Não, leitor, agora não estou contando sonho nenhum, mas puras verdades já por mim passadas.


Oxalá foram fábulas sonhadas!


OUVINDO a proposta do bispo, três vezes tentei dissuadi-lo da absurda comemoração, três vezes ofereci-me — o meu carro estava na porta — para irmos juntos à redação dos jornais publicar uma nota aos fiéis, explicando que houvera um mal-entendido, e que as autoridades desta diocese recomendavam aos fiéis, não as festividades, mas dobradas orações pela conversão dos protestantes. Três vezes o bispo recusou-se alegando que era tarde, e finalmente "que os convites já tinham sido expedidos!" — "Então, Sr. Bispo, a honra da Igreja pesa menos do que os envelopes dos convites?" Houve um momento de constrangimento. Foi então que o Sr. Bispo, com um clarão de quem fizera uma descoberta, saiu-se com esta: — "Mas, professor, o senhor já pensou numa coisa? Se Deus consentiu que Lutero fizesse o que fez, então não pode ter sido tão mau..."


SENTI o sangue afluir à cabeça, a sala parecia-me rodar, e as lágrimas vieram-me aos olhos. Por fim, de pé, só pude articular estas palavras: "Senhor Bispo, daqui em diante nossa conversa tornou-se impossível." Num gesto brusco, ele ergueu-se e sem se despedir de mim esgueirou-se pela porta que ficara entreaberta, e perdeu-se na noite, como se eu o enxotara. Sua Excelência não observou que eu chorava.


VOLVO a pensar no insondável mistério da permissão de Deus, e ouvi Iavé responder a Satã: —"Entrego-te tudo o que pertence a Jó; só não admitirei que nele ponhas a mão. E Satã se retirou..."


QUE permissões terríveis terá Deus concedido a Satã para sermos nós joeirados? Talvez esta de nos deixar reduzidos à condição de cães que conhecem a voz de seu Senhor, que sabem ladrar, que não são os "cães mudos" do profeta (Isaías, LVI, 10), mas cujos pastores, segundo o mesmo profeta, estão cegos e gostam de dormir.


P.S. — Chamo a atenção do leitor para o número especial de PERMANÊNCIA todo dedicado ao Centenário de nascimento de Santa Teresinha. Vale à pena ler e reler muitos dos excelentes textos contidos nesse número.

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