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Nossa luta



Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 08-09-1973


NOSSA luta obsessiva, talvez monótona para o leitor que nestas colunas procura um breve relax de suas próprias lutas, talvez maçante para os que apreciam variedades literárias, nossa luta tem esse aspecto pesado em razão da infinita importância dos valores disputados. São Paulo foi obrigado a fazer sua altiva apologia em vista da impertinência de seus opositores; e este venerável modelo nos deixa a mesma liberdade quando as circunstâncias nos obrigam.


SE O LEITOR está cansado das Conferências Episcopais e das demais siglas que enchem de rugas a figura exterior da Igreja, eu também estou, e cansadíssimo, possuído como Fernando Pessoa de um supremíssimo cansaço. Se o leitor quer leitura mais amena e até mais variada e mais elevada também eu, também eu, modéstia à parte, estou em condições de proporcionar-lhe. Por um feliz acaso, nesta quinzena dobro o cabo da 13ª edição de um livro publicado há mais de vinte anos, e já traduzido em sete línguas, e ao mesmo tempo a 2ª edição de um livro lançado há menos de dois meses. Sim, amigo leitor, Lições de Abismo (AGIR) está na sua 13ª edição; e O Século do Nada (Distribuídora Record) está na sua 2ª edição.


ESSES acontecimentos provam que ainda tenho leitores a despeito de tudo, e esta prova, que conforta o animal-escritor, sempre apreciador de alguma carícia para poder prosseguir, ao mesmo tempo obriga, obriga infinitamente o inútil servidor dos servidores da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se o aplauso prova que tenho entre os dedos uma pena capaz de transmitir, ensinar, comover, mover, ao mesmo tempo prova que devo usá-la para o serviço de meu exigente Senhor. E vae mihi se a não usasse!


TENTAREI aqui mesmo nestas colunas e nestas mal traçadas linhas, vez por outra, variar o registro para não deixar o leitor dormir ou aborrecer-se demais. O leitor é testemunha que várias e várias vezes já deixei os bispos da América Latina para ocupar-me dos bispos do jogo de xadrez, e até para virar cambalhotas líricas a propósito de sonhos sonhados numa insônia em Lisboa e de uma viagem que não fiz a São Luís do Maranhão de Josué Montelo. O leitor está aí para dizer que não minto e que até já cheguei ao despropósito de escrever em versos o resultado de um eletrocardiograma.


MAS passado o delírio, terminado o intermezzo, arrematada a acrobacia, volto ao avental de plantão no serviço de testemunho em razão de dois amores devorantes que não me deixam descanço. O primeiro é o amor do Amor, que sempre deve ser primeiro, total, absoluto, para que os outros tenham direito à mesma doce denominação. A razão essencial e principal de nossa luta há de ser Deus, primeiro servido, Deus, primeiro amado; a razão imediatamente derivada, e mais fácil de explicar porque está ao alcance de nossos sentidos, é a piedade por todos os pobres, pobres em espírito, que vemos no mundo de hoje entregues ao Minotauro do tempo. Dói, e como dói! Ver uma criança, uma flor metida nessa máquina de desidratar que é nosso século. Dói pensar nas criancinhas da América Latina quando vemos que os seus ferozes defensores pretendem engradá-las sob a condição de perder suas almas e quando sabemos que nem engordá-las conseguirão com panelas vazias. Pauvres gens. Pauvres gens, escrevia nas margens dos livros o grande Jacques Bainville que parecia um aristocrata triple sec.


A NÓS também, quando lutamos em defesa dos valores de uma civilização agonizante, estamos sempre pensando em gente, em pauvres gens, pobres ou ricos, que o mundo tritura, que os maus levitas abandonam em favor de um ideal abstrato. Nosso Senhor, do alto da Cruz ex-cathedra, disse: "Sitio". Tenho sede, sede de almas, sede de todas as almas que deveriam animar os corpos dos vivos para o itinerário marcado com Sangue, e que são transviados por aqueles mesmos que os deviam proteger.


ESSA é a razão de nossa luta. Quando eventualmente puxo a corda do sino e denuncio os encontros de jovens que degeneram em orgias litúrgicas, não é para vos molestar senhores bispos e arcebispos, não é para vos aborrecer que puxo a corda do sino: é porque, não sendo embora padre, tenho entranhas de pai, entranhas de padre, e não posso ver um moço sem entrever um filho, nem posso conhecer tais escândalos sem me afligir com as crianças que se degradam, que se aviltam, que se perdem. Vejo, nesta altura, que abusei demais do exemplo paulino, que nos permite e até nos aconselha a própria apologia quando ela se torna necessária ao serviço de Deus.


MAS por hoje, leitor, "altro non vi dico per lo poco tempo que ho. Permanete nella santa e dolce dilezione di Dio. Gesú Dolce Gesù Aurore."


CATARINA de Sena escrevia a seu diretor e dirigido frei Raimundo Cápua, e dizia-lhe que ele não quereria ter mais um minuto de descanso se pudesse entrever, num clarão, o valor e a beleza de uma alma imortal. Consumir-se-ia no serviço da salvação das almas pedido pelo Cristo agonizante: "Tenho sede".


E AGORA nós, pensando no que já fizemos com a corda do sino, o que nos pesa mais não é a lembrança desta ou daquela demasia, é antes, a lembrança dos minutos omitidos no trabalho de nosso sedento Senhor.

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