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Mudança de quê?, por Gustavo Corção



Publicado por Gustavo Corção n’O Globo em 15-09-1973


TODOS os dias esbarramos com algum espetáculo ou alguma novidade aberrante que nos induz instantaneamente este pensamento: estamos diante de mais uma transformação, de mais uma mutação, de mais uma transvalorização. E sentimos que é insuficiente a noção de menor ou maior mudança nos costumes e no estilo de vida que tantas vezes a história já registrou. O desafio que diariamente recebemos dos quadros inopinados, que os jornais estampam e as revistas ilustram, nos leva a pensar em mudanças mais profundas. Há muitos espectadores que se entusiasmam com aquilo que não sabemos se é comédia ou tragédia, e compenetradamente murmuram: evolução! Parece que houve uma mutação no homem, como as que se observam nas moscas drosófilas. Mudou o homem! E o bastardo, o filho da mutação, bate palmas, passa adiante a notícia, e alegra-se com as perspectivas de novas mutações. O termo faz sucesso e se integra festivamente no léxico da hierarquia católica que já admite a ideia de haver mudado a essência do homem. Em várias línguas já li o termo em cartas pastorais e em alocuções de bispos. E logo, admitida essa ideia, impõem-se todos os corolários que querem negar a estabilidade das verdades da Fé.

* * *


NÓS podemos admitir que grande parte da humanidade tenha mudado o modo de pensar e o jeito de querer, que tenha cambiado os objetos de sua admiração e de seus desejos. Podemos facilmente admitir que a maior parte da humanidade esteja entusiasmada com a ideia de se haver transformado em burro o homem da Europa e em onagro o habitante da América Latina. Mas, ainda que esse entusiasmo seja proclamado nos dois hemisférios, sabemos com inalterável e dolorida convicção que o homem permanece o mesmo animal-pensante, embora hoje pense mais no animal do que no prodígio de ser pensante.


MAS esse divórcio entre o que o homem é e o que ele pensa e proclama que passou a ser não é matéria irrelevante. O homem é, por sua trágica condição, um ser constantemente levado a se enganar sobre si mesmo, e a se amar a si mesmo na cômica perspectiva desse engano.


NUMA questão de fundamental importância, na Suma Teológica, Santo Tomás analisa o perverso amor com que a si mesmos se amam os pervertidos. E conclui: "Os homens bons estimam como principal a natureza racional, o HOMEM INTERIOR, e por isso se prezam verdadeiramente pelo que são. Os transviados, ao contrário, pensam que é principal no homem a natureza sensível, o HOMEM EXTERIOR, E É POR ISSO QUE, NÃO SE CONHECENDO RETAMENTE, ELES NÃO SE PREZAM VERDADEIRAMENTE, MAS PREZAM AQUILO QUE JULGAM SER."


PERMITA-ME o leitor aqui o gosto de escrever no original esta lapidar definição do humanismo transviado:


"UNDE NON RECTE COGNOSCENTES SEIPSOS NON VERE DILIGUNT SEIPSOS, SED DILIGUNT ILLUD QUOD SEIPSOS ESSE REPUTANT" (IIª IIIª Qu, 25, a. 7).


ESSA é a tragédia de nosso tempo: o novo humanismo é um humanismo de equivocados que, não sabendo retamente o que são, não se prezam verdadeiramente, mas prezam aquilo que pensam que são, isto é, o burro ou o onagro dos dois hemisférios.


ESCREVI um livro, Dois Amores Duas Cidades (AGIR), sobre esse equívoco fundamental de nosso tempo. E agora, diante das consequências aberrantes da transformação de mentalidade começada nos tempos da Renascença e da Reforma, vemos em cada caso mais ou menos monstruoso o mesmo fundamental equívoco: "unde non recte cognoscentes seipsos...".


O QUE mais choca o pensamento católico neste turbilhão de disparates é a alegria com que os chamados "progressistas" ou "modernistas" anunciam a própria mutação. Esse evolucionismo, que está errado em todos os níveis do conhecimento, onde pretende que a própria matéria é por si mesma capaz de passar da potência ao ato, em níveis ontológicos cada vez mais perfeitos, é especialmente repugnante no humanismo e revoltante no cristianismo. Porque, se tal evolucionismo for levado às últimas consequências, teremos na Santa Humanidade de Cristo, sentado à direita do Pai, apenas um esboço, um feto, e não o excelente MODELO do homem.


OS TOLOS que falam levianamente em mutação e pensam alegremente que mudou neste século, depois do Concílio, a própria essência do homem, não sabem que estão festejando a própria degradação se a mutação foi descendente; ou estão festejando a obsolescência de Cristo-Homem, se a mutação foi ascendente. Em qualquer hipótese perde-se o humanismo e o cristianismo.


E É CONTRA essa "mudança" absurda mas suposta e festejada que devemos lutar. Se queremos defender os valores da Fé, e da Civilização. Lutamos por um ideal mais alto do que todos os demais legítimos ideais, e pelejamos contra o pior inimigo que já se atravessou no caminho do homem em toda a sua história. Queremos progredir nas virtudes e nas ciências, mas não nesse descarrilamento que nos leva à ridícula situação descrita por Santo Tomás: "Não sabendo retamente o que são, não podem verdadeiramente se prezar, porque se prezam por aquilo que não são."


ESSE é o humanismo, o altruísmo tão abundantemente pregado nos meios católicos que apregoam uma valorização do homem alçançada com o esquecimento de Deus. Temos diante de nós um panorama sombrio: uma nova humanidade enche o planeta com o alarde de um falso humanismo que não poderá jamais amar com verdadeiro amor. Da mentira universal do homem sobre si mesmo e sobre Deus só pode nascer a universal inimizade. E não penso aqui numa violenta guerra de extermínio: ao contrário, e com maior horror, penso numa pacífica inimizade feita de infinitas mesquinharias policiadas e mantidas em níveis de decretadas mediocridades.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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