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“Eu vivi os clamores do meu povo”



Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 07-06-1973

RECENTEMENTE — 6 de maio de 1973 — foi publicado com o título deste artigo um "Documento de Bispos e Superiores Religiosos do Nordeste". Em resumo, tal documento descreve as misérias das populações nordestinas e pretende explicá-las pela filosofia que vê sempre na pobreza uma espoliação. No caso atual a espoliação, feita especialmente pelo capitalismo internacional, seria mantida e cruelmente defendida pelo Governo brasileiro, que assim, na análise conjuntural exposta, estaria a serviço daquela trama de capitais estrangeiros. O documento, ainda que alguns de seus signatários talvez o ignorem por congênita incapacidade, hostiliza o governo, inspira-se em critérios de filosofia socialista, e mais especialmente marxista, e destarte contribui para o caudal de anarquismo que põe em perigo de morte toda a Civilização. Na parte que pretende ser uma análise conjuntural, mais de uma vez usa a expressão "classe dominante", que é tipicamente marxista, porque para nós outros os grupos dirigentes não são necessariamente dominantes. A tese anarquista é que atribui sempre uma malignidade intrínseca a qualquer superiorato e a qualquer governo. Nós outros sabemos que há governos opressivos e impatrióticos, como por exemplo aquele que arruinou o Brasil, e pelo qual o primeiro signatário do Documento dos Bispos e Superiores Religiosos do Nordeste nutria ostensiva admiração, e governos patrióticos, como aqueles que libertaram o povo brasileiro, e principalmente o que hoje trabalha para corrigir os erros graves dos anteriores a 64.


DEIXEMOS, porém, a pretensiosa análise conjuntural que evidencia a "ignorância especializada" de seus signatários, e vamos à conclusão. De início assinalo o aberrante abuso de confiança, pelo qual os signatários identificam seu grupo, sua filosofia, suas opiniões e suas aberrações com a Igreja. Falam em nome da Igreja! Mas logo depois dizem: "Temos de reconhecer, com espírito de verdadeira humildade e penitência, que a Igreja, nem sempre, tem sido fiel à sua missão profética, ao seu papel evangélico de estar sempre ao lado do povo." Os atrevidos signatários do Manifesto queriam talvez dizer que "nem sempre os bispos, arcebispos, abades etc... agiram em conformidade com a Igreja", mas como já perderam a prática antiga de falar a língua católica, invertem a proposição e dizem, severamente, que nem sempre a Igreja, nos seus vinte séculos, agiu em conformidade com o que pensam alguns bispos, abades e superiores religiosos do Nordeste brasileiro.


COMEÇAM por se identificarem abusivamente com a Igreja, e logo após se expõem como uma super-Igreja que coloca a outra, a velha, no banco dos réus. Tudo isto "em espírito de verdadeira humildade".


LOGO adiante, e cada vez mais afastados do catecismo, dizem: "A luz, portanto, de nossa Fé e com a consciência da injustiça que caracteriza as estruturas econômica e social de nosso país etc....". Vê-se neste divertido tópico que os signatários do Documento fazem análise econômica com o lumen fidei, não admirando, por isso, que em compensação, coloquem a esperança teologal apontada para o êxito da humanidade neste mundo.


NESTA mesma conclusão, em mais de uma passagem, vê-se que é marxista a filosofia inspiradora de todo o Documento. Exemplos: "O processo histórico de sociedade de classes e a dominação capitalista conduzem fatalmente ao confronto das classes." Evitam o termo "luta de classes". E continuam: "Embora seja isto um fato, cada dia mais evidente, esse confronto é negado pelos opressores (sic), mas é afirmado também na própria negação. As massas oprimidas dos operários, camponeses (...) assumem progressivamente uma nova consciência libertadora". Libertadora!? Sim, esse é o termo lançado em ampla circulação pelos clérigos e intelectuerdas que se atrelaram às esquerdas com o objetivo de nos convencer que na União Soviética e na China de Mao Tse-tung os operários e camponeses afinal alcançaram a libertação!


OUTRO exemplo: "A classe dominada não tem outra saída para se libertar (sic) senão através de longa caminhada, já em curso, em favor da propriedade social dos meios de produção."

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RECORDEMOS fatos esquecidos. Anos atrás alguns dos signatários desse Manifesto quiseram ganhar 10% ao mês em agiotagem disfarçada, e deixaram-se enlear num "conto do vigário" por um "capitalista estrangeiro" mais esperto do que os reverendíssimos que ficaram sem o juro e sem o dinheiro dos pobres. A CNBB na época se apiedou dos vigaristas esbulhados por um vigarista mais hábil, e explicou ao Povo de Deus que os bispos e monsenhores nordestinos, por ingenuidade, por candura, tinham sido enganados. Mas esses ingênuos que mal souberam cuidar da finança própria logo depois continuaram a gritar e hoje querem dar ao Governo brasileiro lições de Economia e de Finança pública.


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EU acredito na existência de exploradores dos pobres: exploradores do suor do pobre e exploradores do pão do pobre. Hoje, entretanto, o mundo nos apresenta um fenômeno muito mais hediondo e muito mais volumoso. Sim, um fenômeno de dimensões planetárias que consiste na exploração da lágrima do pobre. Os senhores bispos e abades da Super-Igreja (que passam pitos na Igreja de Cristo) filiam-se a essa corrente histórica contra a qual espero que o Brasil continue a ser um baluarte.


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NUMA coisa concordo com o Documento. No título: "Eu ouvi os clamores do meu povo." E resumo em poucas linhas toda a minha piedade pela grande miséria que assola o Nordeste brasileiro. Pobre povo! Pobre gente! Não sei se lhes falta renda per capita, mas sei por esse Documento publicado, e com solar evidência, que lhes faltam bispos, abades e superiores religiosos. Que Deus os socorra em tão grande desamparo.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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