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Combatamos o bom combate



Por Gustavo Corção,

n’O Globo em 06–01–1973

NA ALOCUÇÃO GERAL de 04 de novembro p.p. o Papa voltou a falar "na influência que o demônio pode exercer sobre os indivíduos, sobre as comunidades, sobre toda a sociedade e todos os acontecimentos", e acrescentou que essa influência "deveria constituir um importante capítulo da doutrina católica, capítulo que mereceria ser novamente retomado, mas (infelizmente) hoje nada se faz nesse domínio". Na continuação o Papa lembra "que o cristão deve ser militante, deve estar alerta, ser forte e recorrer aos exercícios ascéticos para afastar certas incursões diabólicas".


OBEDECENDO a essa mobilização, que o Papa deseja ver mais ativada, trago aqui uma pequena contribuição, e começo por lembrar que o termo "militante", detestado por todos os secularizantes ou "progressistas", mereceu especial ênfase no Concílio de Trento, que assim se expressou: "Na Igreja há duas partes, uma que se chama triunfante, e outra que se chama militante". A primeira é a Igreja do céu, chamada triunfante porque constituída por todos os lutadores que triunfaram do mundo, das malícias da carne e do demônio. "Militante é a Igreja da Terra, que move uma guerra sem tréguas aos mais cruéis e diligentes inimigos, o mundo, o demônio e a carne." Até aqui o Papa e o Concílio de Trento reafirmam os ensinamentos de Jesus e de toda a Tradição católica. Antes de qualquer consideração tecida em torno dessa lição, convém lembrar o sentido que aí têm os termos "carne" e "mundo".


O PRIMEIRO não quer designar simplesmente a parte corpórea do composto humano, não pretende a Igreja apontar o corpo ou a sensibilidade como inimigos do homem. O termo "carne", tirado da dialética paulina, que opõe "viver segundo o espírito", a "viver segundo a carne", como também ensinam Santo Agostinho (Cidade de Deus, XIV, II e III) e Santo Tomás (IP IIae. qu. 72, a.2, ad primum), não significa a parte corpórea do homem; significa o homem todo quando pretende viver segundo si mesmo (vivere secundum seipsum), isto é, quando pretende ser ele mesmo o supremo e até único juiz de seus atos. Digamos que o termo "carne" nesse contexto significa a malícia do amor-próprio, que em todos nós é o ponto nevrálgico exposto a todas as tentações. E o mundo? Também não deve ser tomado o termo como designando o ser do mundo, que é belo e bom; nem mesmo depois do pecado o mundo é visto como "inimigo", já que está escrito: "Deus tanto amou o mundo que lhe deu seu Filho único" (Jó, III, 6), e também: "Eu não vim para condenar o mundo, mas para salvá-lo" (.16, XII, 47). Não é, pois, inimigo o mundo que nos cerca, nem aprova a Igreja as filosofias de inimizade, que vêm de uma essencial inimizade entre os homens (hobbes) ou uma essencial inimizade entre as classes (Marx). Mas o mesmo evangelista duas vezes citado diz: "O mundo me odeia, diz Jesus, porque eu testemunho contra ele que suas obras são más". (Jó, VII, 7).


QUAL é então o "mundo" que é nosso inimigo? É aquele, ou aquela parte do mundo que rejeita Jesus de um modo ativo e militante, é aquele mundo, ou corrente histórica, que se arma como Igreja, isto é, como anti-Igreja. Nos tempos modernos os principais componentes desse "mundo" inimigo são: o liberalismo, o marxismo, a maçonaria, e agora especialmente o chamado "progressismo".


DEPOIS de bem estabelecidos os conceitos representados pelos três termos, dos quais os mais ambíguos são os que tentamos atrás definir, convém agora dizer duas palavras sobre a dinâmica da tríade maligna.


DE INICIO observemos que qualquer ato humano de aversão a Deus, qualquer pecado, é sempre induzido e provocado pelos três inimigos, sem que isto anule ou atenue a terrível responsabilidade do culpado. O que sem dúvida atenua e de certo modo distribui a responsabilidade é o fato de vivermos imersos numa sociedade riquíssima de interações, mas não é a essa sociedade que daríamos o nome de "mundo-inimigo", porque nela mesma muitas influências e interações são benéficas e protetoras.


SERIA então simplificada demais a explicação da atual desordem do mundo católico pela atuação de um Demônio ex-máquina que estaria desfazendo a obra maravilhosamente bem feita pelos bispos do Concílio e depois do Concílio. E ainda será simples demais a explicação que mostra nos evidentíssimos desvarios dos senhores bispos, sobretudo quando se reúnem, numa direta e predominante influência de Satanás.


SEM dúvida oportuníssimo lembrar aos homens as potestades do mal que querem a ruína de nossa Igreja; mas é indispensável mostrar que essas forças malignas se valem, para nos perder, dos aliados que têm em nós: a nossa vontade orgulhosa e o "mundo" ou anti-Igreja que os homens formam para contestar o senhorio de Deus. E parece-me até que nos tempos presentes não é Satã o mais esquecido inimigo. Na verdade o que é mais esquecido nestes tempos de todas as concessões, de todos os pacifismos, é a ideia de haver um mundo nosso inimigo, ou até a ideia ainda mais simples de haver inimigos. A maior vergonha e tristeza de nossos dias, para a consciência católica, não é apenas a "genuflexão diante do mundo" assinalada por Maritain, mas as especialíssimas genuflexões diante de "mundo-inimigo", do "mundo que nos odeia por ódio a Cristo."


O MAIOR triunfo do Demônio, na batalha a que assistimos, é o do processo de secularização, de horizontalização ou de dessacralização e sobretudo o processo de marxização, com o qual se tenta encobrir um enorme movimento de apostasia sob a denominação de progressismo ou de aggiornamento. Creio poder afirmar, sem receio de exagero, que o maior descaso cometido hoje no mundo católico não é o que minimiza a ação do Demônio; é antes o que corteja o mundo em todas as acepções, e prosterna-se com especial fervor diante daquele mundo inimigo. O maior escândalo do século, e talvez de toda a história da Igreja, é o açodamento com que os bispos e padres se metem a tratar da agropecuária, do desenvolvimento econômico, de Política com minúscula e maiúscula. E nesse açodamento — para máxima vergonha nossa! — tomam o vocabulário, os trejeitos, os tiques e os critérios das teorias e ideologias inventadas e praticadas com o objetivo principal de apagar na Terra os últimos vestígios dos pés e das palavras de Jesus.


UM DOS primeiros corolários do mandamento de amor é o de combater o bom combate. Esse combate começa no nível de nosso amor próprio. A Igreja e os autores espirituais nos dão todas as armas para combater os levantes do eu e para combater as tentações do demônio, mas a verdade é que no momento atormentado que, vivemos hoje, muitos, muitíssimos católicos se sentem completamente desamparado diante do inimigo "mundo' porque veem diariamente seus próprios pastores a incensar o "mundo" e a inventar novas modalidades de flagelar Nosso Senhor no seu Corpo Místico que é a Igreja.

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