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Catarina de Sena



Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 03-05-1973


TRINTA anos atrás — como voa o tempo nesta descida da serra! —pronunciei no Centro Dom Vital uma conferência sobre Santa Catarina de Sena, mais tarde publicada n’“A Ordem", e prometi, ao ouvinte e ao leitor, um outro estudo sobre a doutrina da santa. Não cumpri até hoje a promessa e, na vida picadinha e requentada que vou levando, dificilmente poderei cumpri-la, ao menos como naquela época desejava. Todavia, se não posso saldar a dívida completa, talvez possa pagar um sinal, uma pequena prestação. E é isto que desejo deixar nestas páginas de hoje.


A DOUTRINA de Santa Catarina de Sena, esparsa no enorme Epistolário, e mais explícita e concentrada nos Diálogos, não tem nenhuma diferença específica que a destaque da doutrina da Igreja, mas tem, digamos assim, um timbre. Catarina não teve jamais a menor intenção de fazer obra moderna, interessante, diferente, para os jovens de seu tempo, e é na ortodoxia, na obediência ao depósito sagrado, que está a força e o fervor de sua mensagem. E, se me permitem o paradoxo, direi que sua obra só tem gosto próprio, matiz catariniano, originalidade personalíssima, porque nenhuma dessas intenções ditou a conduta e as palavras da santa.


PODEMOS apresentar o pensamento catariniano por seus dois lados, o divino e o humano. No que concerne à iniciativa divina, à obra da redenção, ao que chamaríamos o "cotê de chez Dieu", a doutrina catariniana é acentuadamente cristológica. É na obra redentora de Cristo, na Paixão, na Cruz e sobretudo no Sangue que a filha do tintureiro Benincasa, de Sena, põe o acento tônico apaixonado de sua pregação. Ao contrário da grande Teresa d'Avila, que teve um dia a tentação de superar a humanidade de Cristo e consequentemente os sinais sensíveis que são as traves da Igreja, para atingir a contemplação do puro divino, Catarina de Sena refere sempre o seu ensino aos eixos ortogonais da cruz, e principalmente ao Sangue que por toda a parte, a troco de tudo, reaparece em suas cartas e em seus sermões. Correndo os olhos pelas três mil e tantas páginas deixadas pela extraordinária analfabeta, vê-se o rubro vocábulo cintilar como os rubis preciosos que os santeiros costumavam encravar na imagem do Cristo Jesus. Pode-se assim dizer que Catarina de Sena, sem desconhecer os abismos da Trindade e as altitudes da divina transcendência, detém-se mais, por amor de seus discípulos, na junção divino-humana inventada pela misericórdia de Deus.


NO QUE concerne à resposta do homem ao desafio de Deus, a doutrina de Santa Catarina de Sena se inscreve perfeitamente na tradição medieval, e mais particularmente naquilo que Etienne Gilson chamou "socratismo cristão" e que contrasta com o que o mesmo filósofo chamou "fisicismo" de nosso tempo. Pregava Catarina a necessidade do conhecimento de si mesma, mas conhecimento direto e imediatamente referido a Deus. Não queria recomendar nenhum método de autoanálise ou de qualquer investigação psicológica ou mesmo moral. Esse tipo de introspecção, que o homem faz confiado em suas próprias forças, era veementemente condenado por ela como obra do amor próprio, geradora de desordem e confusão. Para descer às profundidades da alma é preciso ter acesa a vela da fé, o lumen Christi, que na liturgia católica aparece como sinal de vida nova. O conhece-te a ti mesmo cristão — e nisto Santa Catarina insiste com grande energia — tem objetivo diferente das análises com que a alma se mira ao espelho, ainda que essa atitude seja defensável e até recomendável para a descoberta e cura de alguma peculiaridade psíquica. O que a alma procura é o centro de seu ser em Deus, e sobretudo é o confronto brutal, leal, teologalmente sincero, entre o ser contingente, dependente, pendurado, causado, e o Ser absoluto, incausado e ato puro. A necessidade de tal confronto, no apostolado catariniano, é colocada em termos morais. A metafísica e a moral, teologicamente sustentadas, se articulam com o nexo próximo e forte que caracteriza a psicologia feminina. Em outras palavras, o "conhece-te a ti mesmo" catariniano dirige-se para o problema metafísico do confronto entre o ser contingente e o ser a-se; mas logo reflui e vem dar eixos à doutrina dos dois amores ou das duas vontades. Conhece-te a ti mesmo para veres que não és, diante de Quem de si mesmo disse "Eu sou aquele que sou", e por esse conhecimento cuida de aprender que todo o pecado consiste em quereres seguir a própria vontade. Assim, o socratismo de Santa Catarina visa mais a conhecer o centro da alma atravessada pela vontade de Deus, e habitada pela Trindade, do que se informar das próprias peculiaridades. É um preceito de veracidade profunda, da humildade, e como tal é um termo cautério aplicado ao nervo do amor próprio, que é o falso centro da alma e o princípio de todas as falsificações, centro que a alma toma como cerne de si mesma, fugindo àquele outro verdadeiro, terrível, devorante fornalha onde todas as reivindicações se fundem num longo amém.


E AGORA, amigo leitor, permita que encerre esta pequena homenagem ao dia da dolce mamma Catarina com as mesmas palavras que ela costumava despedir-se dos discípulos: "Altro non ti dico. Permane nella santa e dolce dilezione de Dio. Gesú dolce, Gesú amore."

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