CARTA DE DESABAFO
- Mosteiro da Santa Cruz
- 23 de jun
- 8 min de leitura
Atualizado: 24 de jun

Por Gustavo Corção,
publicado n’o Globo em 07 de agosto de 1971
FOSSEM outras as circunstâncias, eu preferiria guardar no coração e entregar a Deus as tantas cartas de desabafo que recebo de padres, cônegos e até de bispos de todo o Brasil. Acho-me no dever de transcrever esse desabafo de uma alma sacerdotal, para conforto do missivista que, mesmo sob o anonimato, que guardo por motivos óbvios, assim se aliviará. Além disso proporciono às autoridades eclesiásticas informações mais importantes e profundas do que aquelas que costumam estampar nos seus boletins. Aí vai a carta, com alguns cortes:
MEU prezadíssimo e fidelíssimo irmão em Xto. Professor Gustavo Corção:
"CLAMA, NE CESSES, QUASI TUBA EXALTA VOCEM TUAM!
(Isaías, LVIII, 1.)
De há muito, meu caríssimo Prof. GC, venho nutrindo ardente desejo de lhe dirigir algumas palavras para, embora pequenino como realmente sou, prestar-lhe o meu mais INCONDICIONAL apoio nesta terrível luta que vem travando não só contra os inimigos externos da Igreja nossa Mãe, mas SOBRETUDO contra aqueles que tendo recebido o formidando múnus do pastoreio das almas remidas com o precioso Sangue do Divino Cordeiro, traindo ministério tão divino e santo, estão à testa desta imensa pátria brasileira.
QUERO compartilhar de sua dor, de suas lágrimas ante o tamanho descalabro! Esta gente hoje se preocupa com todos os problemas do Brasil, mete o nariz onde não foi chamada nem por Deus nem pelo Governo; as obrigações próprias estão postas de lado ou entregues aos famigerados "peritos" que vão levando o rebanho de Deus para a ruína total, pois não são pastores mas MERCENÁRIOS. Estes estão já definidos por Nosso Senhor no Santo Evangelho: por isto tanto se lhes dá do que possa acontecer às ovelhas; nunca as viram, nem elas os conhecem, nem eles as conhecem e por isso não entendem as suas vozes. Querem apenas a sua lã e o seu leite, quando não a sua carne... E teimam, em ministrar às ovelhas pastagens envenenadas, como muitíssimo bem o senhor tantas vezes tem alertado, mas com completo desprezo daqueles a quem incumbiria, por direito divino, vigiar e resguardar e nada fazem e ainda querem impedir os que querem fazer alguma coisa em bem das almas...
ESTAMOS vivendo dias maus, Prof. Corção! Nunca se pôde imaginar esta autêntica demolição da nossa Mãe a Santa Igreja por seus próprios filhos! Quantos deles, antes pobres diabos que não tinham onde cair mortos, que se meteram em seminários e conventos para ali, estudando às custas da Santa Igreja, e galgando os postos de que hoje desfrutam, agir de modo desnaturado contra sua Mãe! Perderam a fé ou nunca a tiveram! Não largam a Igreja para não perderem o uso e o abuso que fazem de seus bens, e das posições que gozam nela: colocados fora da Igreja, postos no olho da rua, ver-se-iam reduzidos ao que realmente são: a simples NINGUÉM. Já pensou no que seriam aqueles frades das "VOZES", postos fora dali, cada qual tendo que ganhar a sua própria subsistência?... Acabou-se o espírito sacerdotal, o espírito de oração, o espírito de renúncia ao mundo, à carne, aos prazeres, o amor às mortificações, à entrega total de si a Deus, às almas ao apostolado! Disso não mais se trata. Cuida-se de como os padres possam arranjar empregos leigos para poderem ganhar mais dinheiro; só podem trabalhar nas Igrejas, vários deles, só para dizer Missas remuneradas, sendo que para vários, tantas quantas aparecerem há padres rezando 5 e 7 missas por dia! Pior ainda, há Bispos que sabem disso e nada dizem e mantém o pleno uso de ordens a estes heróis e até os têm promovido! Ó tempora, ó mores... Há os que estão morando abertamente em apartamentos e casas com suas concubinas com pleno conhecimento da autoridade diocesana e não só não são incomodados mas até têm sido promovidos com melhoria de paróquias mais rendosas. Os abusos inomináveis contra a liturgia! Não há mais barreira capaz de conter esta gente. Nem a antes inconteste autoridade papal! Tudo ruiu diante deles! Sei duma senhora paralítica que toda vez que tem chamado um frade da N. S. da Paz, aí no Rio, fica traumatizada na consciência, pois o frade vai em mangas de camisa sacramentá-la e na hora de dar-lhe o Corpo de Nosso Senhor o retira do fundo duma sacola ou bolsa onde coloca os demais objetos: Nosso Senhor Sacramentado, Prof. Corção, foi rebaixado a simples COISA. Ah! se São Francisco de Assis pudesse pegar este filho espúrio e renegado que assim trata Nosso Senhor! Ele que recusou se deixar ordenar por não se achar digno de tocar o Corpo de Deus, vendo hoje um seu filho fazer assim com Jesus Sacramentado! — E... tudo vai muito bem, obrigado, na Santa Igreja de Deus! A CNBB vê tudo em tamanha tranquilidade que se pode dar ao luxo de fiscalizar o Governo e ver como ele anda cumprindo com suas obrigações para com os pobres brasileiros! Vai até ver como anda esse negócio da TRANSAMAZÔNICA!... Entretanto, o REINO DE DEUS, a Santa Igreja, a vida espiritual, a piedade, a devoção, o verdadeiro apostolado sacerdotal, a maneira como o povo de Deus vem sendo assistido, como vêm sendo administrados os sacramentos etc. etc. etc., isto não é mais assunto para a CNBB (...) A Igreja no momento parece que está acéfala, pois quando se diz que há lei e não existe sanção o que acontece é desconhecimento da mesma lei ou o seu completo desprezo! O Direito Canônico está relegado ao mais supremo desprezo e esquecimento!
O QUE resta das Ordens religiosas e demais Congregações, antes a glória e o apanágio da Santa Igreja! Estão reduzidas a simples agrupamentos de aproveitadores dos seus patrimônios, pois os membros antigos, "soboles sancta" que teimam em viver o espírito das suas Regras, dos seus Fundadores, estes estão postos de lado, destituídos de qualquer cargo de direção, permitindo-se lhes apenas a acabarem seus dias assistindo a esta desolação e a esta profanação do Lugar Santo, conforme lamentava o Profeta... Tudo está profanado, tudo secularizado, tudo mundanizado! Satanás conseguiu penetrar na Cidade de Deus e conseguiu um número grande de apóstatas e renegados, energúmenos a seu diabólico serviço! E como são diligentes, espertos, ativos e vivos estes filhos das trevas! Já Nosso Senhor nos alertou no Santo Evangelho!
SÓ mesmo DEUS poderá pôr um "basta" a tudo isto! Creio que é chegada a hora de clamarmos, sem descrer do poder e da misericórdia de Nosso Senhor: "Domine, salva nos, perimus!"...
LEIO e devoro os seus artigos, verdadeiros látegos de fogo na face destes renegados! Continuais, meu bom amigo! — CLAMA, NE CESSES!!! Como me vejo possuído duma santa inveja ao ver um atleta de Cristo, já sentindo o peso dos anos sobre os seus ombros fatigados de tantas lutas gloriosas, pelejando o bom combate, de modo viril, indefeso!... Ao contemplar a nossa OMISSÃO deveríamos nos cobrir de vergonha, pois deveríamos escutar o eco das palavras do grande Apóstolo da Gentes ao seu discípulo, e na pessoa dele a nós dirigidas: "Labora sicut bonus miles Christi Jesu!", e, também, aqueloutra que diz: "Non coronabitur nisi qui legitime certaverit!"
FELIZ e mil vezes feliz, meu venerando amigo, a que DEUS houve por bem entregar a defesa de seus direitos, já que nós nos OMITIMOS, nós que fomos colocados especificamente para este mister! O grande Apóstolo afirma: — "Non coronabitur nisi qui legitime certaverit!" Esta sentença nos deve encher de sérios receios pelas nossas OMISSÕES enquanto deve dar indizível consolação ao seu coração indomável nas pelejas pelo SENHOR! Sei avaliar, meu querido irmão, o seu grande sofrimento nesta hora de tão terrível provação! Sei do seu grande amor e devotamento a DEUS, à Santa Igreja nossa Mãe! Vejo sua dor ao vê-lo assim traído por nós que deveríamos ser seus amigos e defensores! Com quanto amargor Ele se queixa: "Si inimicus meus maledixisset mihi sustinuissem utique, sed tu...", mas nós que com Ele nos assentamos à sua mesa e com Ele comemos o seu doce manjar... a sua carne e o seu sangue divinos, nós os seus padres, os seus bispos! Ah, meu bom Prof. Corção, se fosse possível era o caso de ter pena de Nosso Senhor! Mas nós, sim, nós que somos tremendamente dignos de pena, de muita compaixão, pois o traímos tanto e tão continuamente com nossas multiformes [...], com nossas acomodações; com nossa maldita [...] em sairmos de nosso [...] para defendê-LO, por nossa sórdida COVARDIA, para não nos tornarmos alvo dos dardos destes que hoje, NÃO PODENDO RESPONDER-LHE, procuram dizer que não querem manter polêmicas com o senhor. É que não podem e NADA TEM QUE RESPONDER, pois que ninguém tapa o sol com peneira. Sem provas, sem nenhum argumento, negam simpliciter a veracidade devida aos seus escritos e às suas afirmativas, não se pejando de assim baterem em retirada da arena de combate como verdadeiros sendeiros! Como é humilhante e vergonhoso! Castigo dos que fogem da verdade! Dos que vivem a vergonha de sua traição a Nosso Senhor!
SOU um pequenino pároco, no Estado do Rio, onde venho lutando para manter a verdade de nossa Fé e os sãos princípios que sempre nortearam os caminhos de nossa Mãe, a Santa Igreja, nestes vinte séculos de sua já longa existência!
PARA terminar, Prof. Corção, a causa causarum de tantos males que presenciamos reside na indiferença, na apatia, na desídia, numa palavra, na incompreensível OMISSÃO do nosso Episcopado! Na verdade estamos sem Pastores. Lobos devoradores, lupi rapaces, travestidos em pele de ovelha estão dizimando o rebanho do Senhor. Não se vê uma única atitude dum Pastor contra os escândalos de certos padres! Eles se repetem... os lobos às soltas... entre os rebanhos, nos apriscos, sem serem incomodados. Já disse mais de uma vez a alguns Bispos que não desejo estar na pele deles quando do "REDE MIHI RATIONEM VILIVATIONIS TUAE!" Lembrei-lhes a terrível advertência divina pela Mica do grande Isaías: "CANES MUTI, NON VALENTES LATRARE, VIDENTES VANA, DORMIENTES, ET AMANTES SOMNIA, IPSI PASTORES IGNORAVERUNT INTELLIGENTIAM: OMNES IN VIAM SUAM DECLINAVERUNT, UNUSQUISQUE AD AVARITIAM SUAM A SUMMO USQUE AD NIVISSIMUM... (Isaías, LVI, 10 e 11).
O QUE tenho feito é rezar e pedir muitas orações para que Deus nos ajude em meio de tamanhas necessidades: sempre que posso celebro Missas nesta intenção para que Nosso Senhor abrevie estes dias ominosos e tristes. E quero que o bom amigo saiba que aqui se reza e muito por si, para que Nosso Senhor lhe dê toda energia, força, coragem e destemor para dizer sempre e sempre, bem alto e a bom som TODA VERDADE em defesa dos direitos de DEUS, de sua IGREJA, da FÉ e da MORAL. Que em sua destemerosa pena, em seus candentes artigos se possa dizer como São Paulo dizia de si mesmo: "VERBUM DEI NON EST ALLIGATUM", quando se dirigia ao seu discípulo Timóteo, (2 Tmot. II, 9), escrevendo-lhe do fundo das masmorras de Roma, pés agrilhoados, punhos algemados...
PROF. Corção, reze por mim! PERDOE-ME o tempo que lhe roubei. Não tinha direito a isso! Leia como puder e perdoe-me, também, os erros e senões muitos que apontam a cada passo nestas "mal traçadas linhas", pois somente fiado na sua imensa caridade e bondade e porque o admiro MUITÍSSIMO em Nosso Senhor (de Quem sei ser tão amigo), tomei a liberdade de lhe fazer esta que é mais um desabafo que outra coisa. Queira desculpar-me, pois.
QUE Deus nos abençoe, nos guarde e nos guie e queira nos salvar até o seu grande dial... Ele será a sua recompensa infinita! "EGO ERO MERCES TUA MAGNA NIMIS!, PROTECTOR TUUS SUM, ET MERCES TUA MAGNA NIMIS!" (Gên. XV, 1.)
MACTE ANIMO!
Do humílimo serve e Irmão in Christu Jesu,
* * *
JÁ agradeci diante do altar as bondosas palavras desse cônego amigo que nunca vi e que conto encontrar no céu com tantos outros, no dia do Senhor. Nesse meio tempo ofereçamos nossa vida e nossos sofrimentos e rezemos muito pelos que não rezam. Que Deus tenha compaixão de todos nós.