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As causas do fenômeno



Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 15-03-1973


LEIO na revista espanhola IGLESIA-MUNDO as declarações do Cardeal Danielou na Rádio Vaticano. Às diversas perguntas feitas pelo entrevistador, o Cardeal Danielou responde com concisão e clareza, mas a mim me parece, com o devido respeito, que às explicações do Cardeal Danielou falta certa profundidade. Quando, por exemplo, lhe perguntam quais podem ser as causas de fundo da crise, o Cardeal responde:


"A ORIGEM essencial desta crise reside em uma falsa interpretação do Vaticano II. As normas do Concílio eram muito claras:


a) "Maior fidelidade às exigências do Evangelho expressas nas constituições de cada Instituto."


b) "Adaptação das modalidades das mesmas constituições às condições da vida moderna"


"OS INSTITUTOS que permaneceram fiéis a estas normas experimentam uma profunda renovação e têm numerosas vocações; mas no maior número de casos (digamos francamente em quase todos) as diretrizes do Vaticano II foram substituídas por ideologias errôneas, difundidas por numerosas revistas, conferências, teólogos etc...."


* * *


ATÉ ALI falava o Cardeal Danielou. Agora um velho leigo estudioso pergunta: Como explicar que a maioria dos religiosos tenha interpretado tão gravemente mal aquelas diretrizes tão claramente boas?


A MIM me parece que o Pe. Danielou entrou no jogo de tapar o sol com a peneira. Salta aos olhos que não é possível explicar uma brusca e profunda crise na Igreja, por um erro de interpretação do Concílio, sem admitir a preexistência de uma disposição muito difundida de interpretar erroneamente, na direção da secularização, todas as verdades de Fé; ou então sem admitir que foi no próprio Concílio que essa disposição encontrou o campo favorável e cresceu. O que me parece sumamente pueril é imaginar uma situação anterior normal, um Concílio excelente e santo, e o resultado se traduzir numa quase unânime inclinação a interpretar mal diretrizes claras e boas.


ACHO impossível fugir a esta evidência que se impõe: se a situação anterior era relativamente normal, e se o Concílio foi impecável e claro, a explosão de disparates depois dele terá de ser explicada, como na novela de H. G. Wells, por algum gás novo que um cometa tenha infiltrado em nossa velha e honrada atmosfera de azoto, oxigênio, e outras coisas menores. Só nos resta uma alternativa, a de procurar na história recente da Igreja, antes do Concílio, as linhas de "progressismo" preexistente; e procurar no próprio Concílio fatores que, em vez de refrear, ativaram e aceleraram aquelas tendências perniciosas.


DE INICIO ponderemos que, no caso de preexistência de tais inclinações na maioria do clero e da hierarquia, o Concílio Vaticano II se desenrolou com um "personnel" da Igreja muito medíocre, e só por milagre poderia refrear tão Impetuosas e más inclinações.


ORA, é pueril imaginar que todos os Concílios e todos os papados são bons e benéficos para a Igreja. A história da Igreja mostra mais visivelmente o mistério da permissão divina em relação aos inimigos da Igreja, do que o mistério da assistência divina. E a Fé não desempata o problema porque ambas as coisas são críveis.


UM POUCO de estudo mostra que desde o princípio do século agravaram-se as Infiltrações de "mundo" no clero e na hierarquia. A Revolução mundial, que vem das portas do paraíso perdido, passa pela Reforma e pela Renascença, alarga-se em 1789, 1848, 1917 e finalmente no século XX se avoluma assustadoramente, já existia antes do Vaticano II, e tomou parte no Vaticano II.


QUE sinais deixou? O próprio Cardeal Danielou se encarrega de exemplificar quando nos mostra a composição molecular de cada artigo do Concílio: metade feita de um princípio clássico e tradicional, e a outra metade enfeitada de Renovação e tornada assim de irresistível sedução. Esta fórmula antitética daria uma síntese feliz se Hegel estivesse certo. O resultado prático foi o de proposições intocáveis, já que escudadas em princípios clássicos e tradicionais, e ao mesmo tempo abertas para as famosas exigências do século. Substituamos a metáfora eufemística "abertura" por uma outar metáfora "brecha", e uma pequena luz iluminará a cripta ou a catacumba onde os progressistas fizeram do Concílio um amplificador de suas inclinações. Todos nós vimos o resultado: aquilo que o Concílio (tradicional) permitia, o Concílio (progressista) alargou e a era pós-conciliar transformou em obrigação. Os exemplos encheriam este artigo. O livro de J. Vaquié intitulado La Revolution Liturgique (Diffusion de la Pensée Française, 1971), é todo ele constituído por exemplos colhidos na Constituição sobre a Sagrada Liturgia.


***


DE QUALQUER modo estamos diante de uma situação brutal imposta à consciência dos filhos da Igreja Católica. A apostasia coletiva e sistemática, e mantenedora das aparências, permite uma zona dos membros da Igreja que vivem uma indecisão inocente e uma disciplina ingênua. Mas os mais amorosos das coisas de Deus se debatem numa trama de falta de confiança e de certeza moral dos vários sinais que integram a santa visibilidade da Igreja. Se já não sabemos se a missa é missa, se o padre é padre, não admira que também não saibamos se o bispo é bispo ou inimigo da Igreja vestido de bispo. O Demônio, com a permissão de Deus, conseguiu tirar-nos a tranquilidade exterior, mas agarramo-nos a Cristo Nosso Senhor para não perdermos, nos momentos mais difíceis, a tranquilidade interior que só a presença de Deus pode dar.

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