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A Ressurreição, por Gustavo Corção




Por Gustavo Corção publicado n’O Globo, em 21-04-1973


NO CAPÍTULO XV de sua primeira carta aos Coríntios, o Apóstolo começa por recomendar que se mantenham firmes no Evangelho que transmitiu e que ele mesmo recebeu; e repete o que tantas vezes pregou: "que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Sagradas Escrituras; que foi sepultado, que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Sagradas Escrituras, que apareceu a Cefas, e logo após aos doze. Depois apareceu uma vez a mais de quinhentos, dos quais muitos ainda vivem, e finalmente a ele mesmo, aborto que não merecia ser chamado apóstolo por haver perseguido a Igreja de Deus.


E DAÍ, com veemência, começa o apóstolo a responder às dúvidas que parecem espalhadas na Igreja de Corinto por algum discípulo dos saduceus. Temos nos versículos 12 e seguintes a mais calorosa e patética pregação da ressurreição dos mortos: "Pois se de Cristo se prega que ressuscitou, como dizem alguns entre vós que não há a ressurreição dos mortos? Se não há a ressurreição dos mortos, então Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vã é nossa pregação e vã a vossa Fé. Seremos testemunhas falsas de Deus, porque contra Deus testemunhamos que Cristo ressuscitou, o que não seria verdade se não há ressurreição dos mortos. Porque, se os mortos não ressuscitam, Cristo não ressuscitou; e se Cristo não ressuscitou vã é vossa Fé e ainda estais em vossos pecados; e até os que morreram em Cristo pereceram. E se é só nas coisas desta vida que temos a esperança firmada em Cristo, somos os mais miseráveis de todos os homens!" (I Cor. XV, 12-19).


TODO esse jogo de dúvidas supostas é ardentemente desenvolvido por Paulo para concluir que as mais desgraçadas criaturas não são os homens que nunca ouviram o doce nome de Jesus e nunca ouviram as promessas de Deus. Não, os mais desgraçados dos homens são aqueles que receberam a palavra de Deus, que nela se alegraram e um dia, dando ouvidos às serpentes que andam no mundo, se acharam despidos, desarmados, despojados das esperanças do céu, como se tivessem sonhado e agora acordassem. Porque a vida, a vida presente, a vida conscientemente vivida reduz-se ao instante que medeia dois passos, toe, toe, ou entre duas pancadas do coração, tuc, tuc. Sonhamos a beatitude eterna na Terra dos Ressuscitados, onde o sol é a Glória de Deus, e acordamos toc, toc, a caminho da morte. Então comamos, bebamos e coroemo-nos de rosas porque amanhã morreremos. Acaso algum sábio pretenderá criticar esta maneira de aproveitar o fugitivo presente? Então indique-nos outro que seja melhor, que seja mais nobre ou mais santo. Se Cristo não ressuscitou, se é vã a nossa fé, não há de ser ela mesma que nos poderá encher o fugaz presente marcado pelo metrônomo que é o coração. Se é vil enchê-lo de prazer, vão será enchê-lo de falsa sabedoria. Se Cristo não ressuscitou, se amanhã morreremos sem esperança de ressurreição, então a vida inteira se torna um pesadelo em que estamos perdidos, desamparados, sem sabermos o que fazer entre cada duas pancadas do coração.


QUE sentido terá então esta existência cuja consciência reprova e escarnece? Que sentido terá a vida desse monstro capaz de desejos tão altos, capaz de sentir o desejo da presença de Deus, ou na mais humilde das hipóteses, capaz de desejar esse desejo?


E NÃO é só no céu e depois da morte que colocamos a alegria de nossa esperança. Agora e aqui mesmo, entre um tuc e outro tuc do cansado coração queremos que nosso instante tenha dimensões de eternidade. Se Cristo não ressuscitou como Deus mesmo nos diz em Sua revelação, então tudo é vão e enganador, e nem podemos dizer que sonhamos e acordamos. Sonhamos e continuamos a sonhar.


* * *


MAS o Apóstolo Paulo não era o que hoje se chama uma alma inquieta, ardente sim, mas ardente nas certezas da Fé, e só usou aqui o jogo das dúvidas para mostrar aos Coríntios que nessas vacilações nós nos tornamos os mais miseráveis dos homens. E por isso retoma logo o seu tom de apregoador do Absoluto: "Não. Cristo ressuscitou de entre os mortos como primícias dos que morrem. Porque, assim como por um só homem veio a morte, também por um só homem vem a ressurreição dos mortos. E já que em Adão todos morremos, em Cristo somos todos vivificados."


E É A ALEGRIA exultante desta certeza que a Igreja canta a Festa das festas no ponto mais alto do ano litúrgico. O fruto desse júbilo litúrgico poderá ser o de acordar as almas preguiçosas que passam o amor inteiro vagamente alheias à esperança da ressurreição. Melhor fruto, porém, será o da confirmação enfática, festiva, daqueles que todos os dias veem na missa a morte e ressurreição de Cristo, e em cada ato de sua vida põem uma ação de graças e uma confiança nas promessas de Deus.


* * *


OS TEMPOS turvados que vivemos são tempos de instante confiança no homem, e, portanto, de desespero. Sim, é contra a Esperança que pecaram aqueles que se afastaram da Igreja e se entregaram de corpo e alma às preocupações temporais. Ainda que pareçam bem intencionados quando falam em direitos humanos, em terceiro mundo, em problemas sociais, logo se vê pelas infelizes soluções que escolhem a malícia do orgulho que se ergue contra Deus.


NESTE mundo, enquanto ouvirmos a voz trovejante dizer: "Eis que faço novas todas as coisas", nossa bem-aventurança é a das lágrimas que choramos com saudade de Sião, nossa pátria verdadeira.


"Ó tu, divino aposento,

Minha pátria singular,

Se só com te imaginar

Tanto sobe o entendimento,

Que fará, se em ti se achar


Ditoso quem se partir

Pera ti, terra excelente,

Tão justo e tão penitente

Que, depois de a ti subir

Lá descanse eternamente."

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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