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A posição do espírito



Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 24-11-1973


DA mesma ordem de ideias que nos proporcionou o artigo da 5ª - feira passada, sobre a posição do corpo, onde pretendi provar que em todas as iniciações humanas é preciso começar por uma atitude inicial acertada, entre tantos erros possíveis, pretendo hoje tirar reflexões que se estendem sobre a vida inteira: desde os primeiros passos o homem precisa ser corrigido daquela "tendência natural de fazer as coisas mal feitas" descoberta por nosso Teruz, n'O Pinguim; precisa aprender a andar, a sentar-se com modos, a falar e a calar-se. De um modo geral, o homem desde cedo tem de aprender uma maneira de estar entre os homens, cumprindo pequenas obrigações e vencendo pequenas espontaneidades que devem efetivamente ser vencidas pelo sentimento mais forte da presença dos outros, que é uma variante do sentimento da presença de Deus. Antes da grande calamidade que se abateu sobre a cristandade, todas as casas religiosas começavam o noviciado pelo exercício da tenue.


UMA freira não cruzava as pernas, um monge beneditino passou quatorze séculos sem se rir com o riso que sacode o corpo inteiro, e sem atravessar o claustro correndo a não ser em caso de incêndio. É possível que houvesse nisso, às vezes, algum exagero, e que muita noviça imaginasse que chegara à via unitiva pelo fato de ciciar e andar com passos miudinhos. Nisto observa-se a lei do pêndulo com que muitos quiseram explicar toda a "calamidade". É verdade: houve exagero; havia uma fresta aberta para a hipocrisia, mas é curioso notar que aquelas mesmas mestras de noviças que mais minuciosamente cobravam as "grandes réverences" devidas à abadessa, foram as que mais depressa encurtaram as saias e mais depressa aderiram à Calamidade. Em todo o caso, parece-me fácil compreender a necessidade de certa contenção a ser provada nas pequenas coisas. O perigo do exagero do lado dito integrista é sempre menor, porque sua lei interna é a da contenção, enquanto o lado oposto, ao contrário, se abre para o infinito. E não há de ter sido à toa, nem fruto de azedo misoginismo, que levou São Bento a ser severo com as espontaneidades do corpo e da mistura dos sexos. Os grandes fundadores e grandes santos conheciam melhor do que nós, e do que toda a hierarquia viva da Igreja de hoje, como é feito o homem, e como é apontado o caminho da santidade, e sobretudo sabiam que não fora para divertirem-se que Jesus aceitou o Calvário, e eles o Mosteiro.


TRANSPONDO uma oitava acima nosso problema da primeira entre as primeiras iniciações, agora na vida religiosa, eu diria que há também para a alma uma atitude e uma posição que estão na base de toda e qualquer iniciação espiritual: a constante, permanente e habitual consciência de estar na "presença de Deus". Esta é a primeira e principal lição que a alma deve aprender. Deve aprender a ESTAR. E é nesse "estar" que defino a consciência frequente, permanente, habitual de estar na presença de Deus.


E NÃO fique nervoso o homem espiritual ao imaginar que deva estar tão vigilante, tão atento que não cometa na recitação dos salmos ou do terço a menor distração. Seu exercício habitual de estar na presença de Deus mais depressa deve levá-lo a lembrar-se constantemente que Deus não se esquece d'ele mesmo quando é por ele esquecido.


EM OUTRAS palavras: de dois modos podemos exercitar a consciência de uma presença habitual, ora como um pai que se habitua a zelar pelos filhos; ora como um filho que tem sempre confiança na Justiça e no Amor do pai. Este será o nosso modo próprio de estar na presença de Deus: disposto a obedecer, pronto a agradecer, alegre em confiar.


* * *


À PRIMEIRA vista, meu leitor talvez imagine que hoje entrei a delirar, e que estou a exigir coisas fabulosas do nosso amigo "o homem moderno" que já espalhou pelos jornais e pela TV sua maioridade e sua emancipação de todos os tabus.


ORA, o que tentei traçar nestas linhas foi apenas um modesto mínimo que me parece perfeitamente exigível do planeta habitado: ou ele se habitua à presença do Criador e ao menos debilmente procure tirar consequências dessa Presença, ou então preparemo-nos todos para proporcionadas consequências de tão desvairado descaso. Ou agarramo-nos essa mínima lembrança habitual de que Deus é Deus, e com Deus não se brinca; ou agarremo-nos uns aos outros para o dia próximo da grande loucura que certamente não será contornada pelo serviço de refrescos e de gravadores da ONU.


DIZEM que sou pessimista porque não confio demais no homem, esse conhecidíssimo louco enfatuado e vazio. Diante da obra-prima com que encheu o século e pretende esvaziar a Igreja confesso minha moderada confiança no personagem. E quanto mais moderno diz que é, menos confio na sua vida pregressa e em suas futuras proezas. A alternativa está aí já conhecida: ou aprendemos a admirar as estrelas e os átomos dando graças a Deus, ou admiramo-nos a nós mesmos mirando-nos no átomo. As consequências não se farão esperar muito tempo porque para três ou quatro bilhões de deuses pervertidos não há planeta que chegue. Ainda é tempo de descobrir a Presença de Deus e o gosto infinito de sua misericórdia desde aqui anunciada na inocência de Jesus crucificado, e na brancura de Jesus sacramentado. Fora dessa alternativa de sacrifício e penitência, frequentemente pedido pela Virgem Santíssima, que tantas e tantas vezes no céu pediu a permissão de ainda uma vez descer para chorar conosco, só nos resta o prosseguimento acelerado da calamidade, e a explosão do pacifismo e da filantropia, que é o amor do antropóide cultivado na ONU e na Comissão de Justiça e Paz. O dedo dos Direitos do Homem já se aproxima do painel das conquistas do Homem. Os reatores esperam. Os átomos esperam. Os grandes reformadores é que dão sinais de impaciência.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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