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A Igreja e o mundo



Por Gustavo Corção publicano n’O Globo em 01-11–1973


ENTRE as várias declarações, cada qual mais gritante, li a de um velho conhecido nosso, o Pe. Cardonnel, que, já não sabendo que blasfêmias cuspir aos céus, comparou Salvador Allende a Jesus Cristo. Quem sabe se não foi o nome "Salvador" que levou o dominicano francês a tão arrojado paralelo? Esse Cardonnel esteve aqui no Brasil em 1962, se não me engano na data exata, e foi para nós a primeira revelação de que alguma coisa acontecera na venerável Ordem dos Pregadores. Pôs-se a escrever em O Metropolitano, órgão estudantil, e logo abriu, sem hesitações, todo um leque de variadas asneiras convergentes nas trinta moedas com que, nesse tempo, Jesus era vendido aos marxistas.


OS "JOVENS" de O Metropolitano apaixonaram-se pelas tolices do frade e, quando o Cardeal Câmara conseguiu a expulsão do energúmeno, juraram fidelidade e amor eterno: as páginas de O Metropolitano estariam sempre abertas ao Mártir. No dia seguinte, efetivamente, lá estava a colaboração do frade francês com suas habituais asneiras; mas no fim da semana extinguiu-se o amor eterno dos jovens da UNE e Cardonnel mergulhou no esquecimento. Foi parar na Austrália. Mas certamente os gloriosos provinciais dominicanos que em 1968 assinaram a torpe missiva enviada ao Cardeal Le Roy (que preside uma verruga da Igreja chamada por derrisão Comissão de Justiça e Paz) não podiam deixar perdida entre os cangurus tão preciosa jóia.


REAPARECE Cardonnel em Paris com pronunciamentos que já não espantam o mundo calejado, e não assustam a hierarquia adormecida.


E POR que é que energúmenos ímpios, blasfemadores e desmoralizadores da Igreja têm sinal verde no mundo católico de hoje? Porque a Santa Sé, ocupadíssima em resolver problemas de litígios temporais, entregou às Conferências Episcopais hipertrofiadas o cuidado das coisas de cada "igreja nacional", como se pudéssemos admitir na hierarquia da Igreja Católica essa entidade essencialmente protestante. E aqui nos defrontamos com a principal distorção da Igreja nos tempos presentes: essa instituição infra-eclesial e destituída do direito marcado com o selo divino dissolve e liquidifica, ao mesmo tempo, a suma autoridade do Papa e a autoridade de cada bispo. Os resultados desse neoplasma são visíveis no Brasil, no Chile, na Espanha, na França.


NO CASO do Chile, como vimos meses atrás, o coletivo episcopal levou os senhores bispos a aplaudirem a posse de Allende, e o Sr. Núncio a transmitir a Roma as informações do alegre conúbio. Derrotado o infeliz Salvador (que Cardonnel confunde com Jesus Cristo), apressam-se os bispos e o Núncio a declarar que o Papa fora mal informado! Mas essa girândola de hipocrisias parece não ter ainda chegado a Paris, onde Marty e outros continuam a pensar que ainda devem manter o tom que se lê em La Croix, isto é, que o verdadeiro católico pós-conciliar deve continuar a aplaudir o comunismo e a rosnar contra as juntas militares.


EM TODAS as aberrações "que constituem o espetáculo quotidiano de nosso tempo devemos manter sempre um atento critério que se baseia na distinção essencial entre a crise da Civilização, tomada em suas dimensões próprias e temporais, e a crise do catolicismo tomado também nas suas dimensões próprias e sobrenaturais. É verdade que as duas coisas se entrelaçam e se entrechocam. Uma estimula a outra, ora como causa tomada em certa linha, ora como efeito que, num processo de feed back, reflui sobre a causa, para represá-la ou para acelerá-la.


NESSE entrelaçamento de interações, muitas vezes atribuímos não apenas aos eclesiásticos, mas à própria Igreja, escândalos que são produtos específicos de uma civilização afastada de Deus, negadora de Deus, e por via de consequência desprezadora da Igreja que Deus cravou no mundo, a começar pela semente divina plantada, no seio da Virgem, como semente e começo de uma restauração de seu reinado na pessoa de Seu Filho. Outras vezes, ao contrário, atribuiremos ao mundo e aos seus dirigentes escândalos que na verdade se originam nas tenebrosas omissões dos homens de Igreja, ou do sal da terra, como disse Nosso Senhor. Nunca foi tão difícil discernir para bem julgar. E não se precipite aqui o leitor devoto a nos dizer que "não podemos julgar". Não há palavra do Evangelho tornada maliciosamente mais equívoca. Onde Jesus Cristo nos diz que não devemos julgar em foro íntimo como quem quer orgulhosamente adivinhar os corações, ou quer ser como Deus, os zelosos leem uma proibição de ajuizar, de usar a razão para entender, tanto quanto possível, os movimentos das coisas e dos homens entre os quais caminhamos. O homem de Deus é, em cada página do livro santo, convidado a bem ajuizar para bem se mover. A virtude da Prudência nos apura a lucidez do juízo para o reto agir. Hoje, entre a tormenta dos costumes do século, a mais dolorosa paixão dos homens da Igreja nos convida ao estudo, à meditação, à oração acima de tudo, para que nosso sentir religioso se apure, e para que saibamos descobrir debaixo do estardalhaço das coisas visíveis os fios das coisas invisíveis.


EM CERTAS circunstâncias a consciência católica fica boquiaberta quando percebe, nos lugares santos, aberrações maiores do que as que se veem nos circos ou nos prostíbulos. Houve recentemente no Chile a derrubada de um governo comunista que arruinara o país. Um católico mediano já devia saber, de antemão, que esse regime é severamente condenado pela Igreja por ser afrontosamente contrário à lei de Deus, e por ser, por isso, necessariamente desumano e destinado, infalivelmente, aos maiores fracassos. Ora, é com surpresa já fatigada, já relativamente pouco surpreendida, que vemos num país como a França o episcopado levantar-se para chorar sobre a injúria feita ao comunismo, e para lançar apóstrofes contra as forças armadas como se Leão XIII, Pio X, Pio XI, Pio XII tivessem escrito encíclicas contra os militares e incitamentos calorosos de apoio aos comunistas.

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