A Igreja
- Mosteiro da Santa Cruz
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Por Gustavo Corção,
publicado n’o Globo em 04 de setembro de 1971
PEÇO ao leitor um pouco da virtude da Paciência que Dom Hélder despreza para voltarmos às estranhas declarações desse prelado. Tomemos o que nos diz ele de Caracas, e desde já observemos que o fiel seguidor de Dom Hélder deveria ter na sua sala um globo terrestre com alfinetes e bandeirinhas para assinalar o ponto, como fazem nos navios. Dom Hélder nos obriga a uma mobilidade universal, nacional e internacional. Hoje estamos em Caracas e ouvimos estas palavras aladas: "A Igreja não tem força moral para exigir transformações de estruturas no mundo se não der o exemplo de coragem para enfrentar a transformação de suas próprias estruturas." Como se vê, Dom Hélder ralha com a Igreja, passa pito na Igreja, e ameaça a Igreja de ficar sem sobremesa se não tiver a coragem etc. etc. Em resumo: o humílimo padrezinho de batina surrada que não usa a cruz peitoral de ouro fala à Igreja com voz de patrão, ou de quem já ultrapassou infinitamente os limites dessa pobre esclerosada.
MAIS abaixo, no mesmo telegrama de Caracas ("O Estado de São Paulo", de 26 de agosto) vemos novamente Dom Hélder de palmatória a dizer "que a Igreja é, em grande parte, responsável pelo atual estado de injustiça social". E aqui emenda a declaração que já comentamos na quinta-feira: "Devemos ter a coragem de reconhecer que a preocupação de manter a autoridade e a ordem social nos levou a louvar virtudes como a paciência e a aceitação dos sacrifícios, que alimentam um quase fatalismo e serviram para favorecer os opressores, contribuindo, na prática para dar aparência de razão a Marx: a religião como ópio das massas."
A ALGUM leitor católico menos despreparado do que os padres que perderam seus anos de seminário, como um Cardeal assinalou, eu aponto o curioso e quase divertido desembaraço com que Dom Hélder, com um revés da mão, põe fora toda a teologia ascética e mística. Tudo isto é maconha do povo. O que importa agora, acima de tudo, é acabar com o subdesenvolvimento do terceiro mundo. É curioso que não haja nos Evangelhos nenhuma referência a esse terceiro mundo entre as várias passagens onde Jesus fala do mundo; e nenhuma referência a essa preocupação de acabar com a pobreza. Qualquer pessoa que ler os Evangelhos com mediana atenção poderá até escandalizar-se com o espantoso desinteresse que Jesus revela pelo progresso socioeconômico das regiões desfavorecidas.
É FULGURANTEMENTE evidente que não foi para esse programa sociológico que o Verbo se encarnou, que Jesus chamou seus primeiros discípulos, e depois morreu na Cruz. De onde eu concluo que Dom Hélder em Caracas queixa-se da falta de coragem dos outros mas não tem a coragem de dizer toda a verdade de sua nova religião. Não é só a Igreja que é responsável pelo atual estado de injustiça social, é Nosso Senhor Jesus Cristo. O Professor Alceu Amoroso Lima já teve coragem de dizer, em livro ("João XXIII", José Olympio): que "não simpatiza com um gesto — ''um só gesto" — de Jesus". E logo acrescenta: "Mas justifico!" Ele justifica o gesto de Jesus Cristo!! O caminho está aberto. Dom Hélder. O que é preciso a todos os senhores que querem salvar o mundo é a coragem de dizer logo que o culpado de toda esta confusão é Nosso Senhor Jesus Cristo, que não soube ou não teve coragem de aproveitar a oportunidade de malhar no imperialismo de Roma quando lhe perguntaram se deviam pagar tributo a César; que não soube conscientizar os galileus quando lhe trouxeram a notícia do massacre no Templo (Luc. XIII, 2-3); que respondeu mal a Judas quando esse progressista exprobrou a Maria Madalena seu desperdício de óleo, e seu triunfalismo.
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OUTRA coisa que ressalta das várias declarações de Dom Hélder Câmara é o seguinte: esse arcebispo não sabe o que é Igreja. Confunde os membros com o todo, e esquece-se (se algum dia soube) que a Igreja tem por cabeça Cristo e por alma incriada o Espírito Santo, e nos tem por membros na medida em que agimos segundo a norma de pertinência. Sim, Dom Hélder não sabe que um católico não poderá sem pecado, ou sem asneira, dizer que a "Igreja é responsável por tais injustiças". Dom Hélder coloca como sujeitos de suas proposições a Esposa de Cristo com mais desembaraço do que se falasse de D. Branca ou de D. Marina. "A Igreja é responsável (ou culpada) por essas injustiças...". Dom Hélder não sabe o que é Igreja. Ou esqueceu-se, se algum dia soube. Não sabe que essa sinédoque pode ser usada por jornalistas, otorrinolaringologistas, pediatras, bombeiros, ornitólogos, campeões de boxe, animadores de TV e demais profissionais, mas não pode ser usada com o mesmo desembaraço por um arcebispo que assim aumentará as preocupações de Dom Eugênio Salles, que já falou no despreparo do clero.
DOM HELDER não sabe que pode queixar-se dos membros da Igreja, e até queixar-se nominalmente, mas não pode queixar-se da Igreja. O curioso, e agora decididamente divertido, é que eles, os Dom's Helder's pensam que sou eu que firo a caridade falando deles como falo, e que sou eu que assim falando, falo mal da Igreja!!!
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TENTAREI explicar claramente como é que Dom Hélder podia queixar-se dos católicos sem deixar de ser católico (como faz quando acusa a Igreja). Sua queixa podia ser assim formulada: "Os responsáveis por essas injustiças, pela escalada do terrorismo e da pornografia, somos nós que não somos santos, somos nós que gostamos mais de viajar, de voar, de praticar o esporte de seguir a onda de lama, somos nós — todos nós que não somos santos — os culpados. E não a Igreja, não Santo Tomás de Aquino, não Santo Inácio de Loyola, não São Pio X (como insinua o Professor Alceu A. Lima no mesmo livro supracitado), não Catarina de Sena, não Rosa de Lima, não Maria Madalena e não os anjos, arcanjos, tronos, querubins e serafins, não Maria Virgem Mãe de Deus, não Nosso Senhor Jesus Cristo, não a Trindade Santíssima.
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ESPERO que a CNBB não se solidarize com a acusação que Dom Hélder faz à Igreja, julgando que esse seja um dever em relação à própria Igreja. Seria sumamente proveitoso para todo o episcopado brasileiro se os senhores bispos declarassem, em conjunto, ou em declarações pessoais que afinal de contas não são vedadas aos bispos, que as declarações de solidariedade já imprudentemente assinadas não envolvem essas novas e mais "corajosas" declarações de Dom Hélder, hoje em Caracas e amanhã em Tóquio. Só podemos ter certa tranquilidade em relação à Suíça porque esse quádruplo país teve o bom senso de sentir que seus queijos seriam menos saborosos, seus relógios menos exatos, e até, suas paisagens menos tranquilizantes, se admitissem a filosofia da total permissiveness e se tolerassem a discurseira incendiária de Dom Hélder Câmara.