O socialismo do arcebispo
- Mosteiro da Santa Cruz
- há 5 horas
- 4 min de leitura
Atualizado: há 24 minutos

Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo
CINQUENTA ou sessenta anos atrás ainda era admissível que alguém acreditasse nas motivações generosas dos socialistas e no seu ideal de justiça. É verdade que o Sumo Pontífice dessa corrente histórica, ou dessa Igreja, nunca ocultou seu desprezo por tais categorias morais e religiosas, coisa que fazia em virtude de sua granítica convicção, e que fazia sem talvez imaginar os graus e matizes de torpeza e de impostura que seus apóstolos teriam de consumir para a catequese dos "idealistas" que vivem a sonhar com um mundo mais perfeito desde que umas tantas coisas achadas em sua imaginação, ou na simplificada experiência de sua vida, fossem retificadas. Todos os utopistas são simplistas, uns mais, outros menos. Um bravo lusitano, condutor de um dos bondes de minha alegre infância, confiou-me um dia seu ideal político e social: "Se eu fosse Presidente da República, moleque não tomava carona de bonde".
O MUNDO está cheio de indivíduos que sonham consertá-lo e muitos até já lançaram no papel as ideias principais. Meu fantasma de infância contentava-se com a modesta parcela da disciplina dos moleques em relação à majestade dos bondes; o Presidente Jânio Quadros sonhou com a proibição de briga de galo, e foi mais feliz do que meu condutor de bonde, porque chegou à Presidência da República, sem todavia chegar a uma demonstração cabal do mérito de seus ideais.
VOLTEMOS ao socialismo e às suas motivações. Hoje é preciso ser ingênuo demais, digamos logo, é preciso estar plenamente inserido numa das várias gradações da faixa da imbecilidade, para ainda acreditar na generosidade original do socialismo depois do espetáculo de perversão e de desumanidade que essa seita tão generosamente — agora sim! — nos oferece por todos os meios de publicidade. Mas ainda há quem creia na beleza do vocábulo, no faiscante atrativo da ideia e no resplandecente porvir de seus programas.
QUALQUER pessoa medianamente estudiosa, formada e informada, sabe que o socialismo tem causa num instinto mais profundo e mais perverso do que se vê nos mostruários que seus próprios apóstolos exibem: o instinto da queixa. Não há matéria mais abundante em todo o universo moral do homem do que a "queixa": todos têm queixas de tudo e de cada coisa, de todos e de cada um. A vida, como disse Machado, é uma série de cachações, ora ninguém gosta de cachação, logo todo ser vivo e consciente é um queixoso, um compacto e denso queixoso pronto a irradiar a energia que queima, corta, fere, destrói, conforme o caso. Na sua mais densa e perigosa forma esse instinto de queixa se concentra sobre si mesmo fazendo do homem um inimigo de si mesmo (um ressentido em alto potencial), e logo depois um inimigo de Deus. É nesta ponte venenosa que nasceu na história o revolucionaríssimo — que, nos tempos modernos, vem da Reforma e da Renascença. São essas águas turvas do ressentimento que formam bacia hidrográfica e chegam no século passado como águas lustrais contra todas as injustiças. O socialismo tornou-se a maior impostura do século anterior e do nosso quando se apresentou como bandeira de um mundo melhor. Fez tudo para desmoralizar-se, acumulou fracasso sobre fracasso, perversidade sobre perversidade, mas ainda há quem caia no conto, porque aqui intervém outro fenômeno: na mesma medida que a história exibe e elucida certas coisas, como o socialismo, perturba e eclipsa outras produzindo um alarmante alargamento da faixa da imbecilidade a que atrás nos referimos. E por isto ainda há quem acredite em algum socialismo.
IA EU DIZER: "Dom Hélder, por exemplo", mas contive-me por ter convicção próxima da evidência de que Dom Hélder não pertence à categoria dos ingênuos que ainda respeitam e admiram o socialismo, mas àquela outra dos pervertidos que procuram espalhar uma coisa sem talvez acreditar em nenhuma. Suas entrevistas já se tornaram famosas e pasmosas. Agora tenho diante de mim a entrevista concedida ao jornal "Spandauer Volksblatt" e publicada em CADERNOS GERMANO — Brasileiros de 1/2/72. O jornalista pergunta ao arcebispo se ele é socialista. Resposta: "Sim. Deus criou o homem segundo sua imagem, e assim o homem é co-criador e não escravo. Podemos por isso admitir que na sua maioria os homens sejam tratados como escravos?"
DOM HÉLDER queixa-se do mundo, da sorte dos homens, mas não tendo a simplicidade de meu condutor de bondes não se julga obrigado a sequer delinear seu programa de salvação se chegasse à Presidência da República. Receando talvez não bastar esse cargo num só país para tal desempenho, e não existindo ainda o cargo de Imperador do Planeta, Dom Hélder só poderia explicar o que faria com o socialismo se fosse Deus. Não ousando ainda essa confissão, Dom Hélder abriga-se na mais piramidal humildade jamais oferecida aos papalvos do mundo inteiro, e de olhos baixos confessa não saber o que quer: "Meu socialismo é um socialismo especial, um socialismo que respeita a pessoa humana." E nem sequer nos diz se no seu socialismo serão permitidas brigas de galo e poderão os moleques tomar caronas de bondes.
O ENTREVISTADOR, com uma obstinação que os progressistas acharão irritante, insiste. "Was tun?" "O que fazer?", e recebe de nosso arcevoador arcebispo estas palavras aladas: "Não sei nenhuma resposta." Depois desta límpida declaração envereda na turva mistura de palavras que não desmentem a concisa resposta: Dom Hélder não sabe o que fazer. Mas, enquanto não sabe o que fazer do mundo se fosse Deus, sabe muitíssimo bem aproveitar todos os convites do Câncer planetário para multiplicar suas caretas, suas palavras generosissimamente desprovidas de nexo. Beneficiário n° 1 ou 2 do alargamento da faixa de imbecilidade do Mundo, e da loucura da Igreja (non proprie dictu sed secundum quid). Dom Hélder continua a voar, e a nos cobrir de tristeza e de vergonha.
* * *
EU TAMBÉM, quando li o abominável assassinato de Sallustro, pensei logo em Dom Hélder e na entrevista dada a L’Express.