Capitalismo e Comunismo
- maybsantos
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Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em abril de 1971
"O SÃO PAULO", semanário da arquidiocese de São Paulo, volta a reafirmar que a Igreja condena tanto o Comunismo como o Capitalismo, "estando realmente equidistante de ambos".
JÁ MOSTREI em artigo da semana passada, que a Igreja condenou veementemente e repetidamente o comunismo, tomado não apenas como sistema ou estrutura econômica mas como filosofia política e cosmovisão, e dele disse, pela voz de Pio XI, que é "ímpio, desumano, monstruoso" e "intrinsecamente perverso". Não reside pois num mau uso adjetivo, e sim em sua substantiva compleição, a malignidade do comunismo.
AO CONTRÁRIO disto, e por mais abundantes que sejam as queixas que a Igreja deixou gravadas contra as injustiças sociais, é sempre o mau uso adjetivo que ela condena no sistema econômico capitalista. E por mais severamente que censure, jamais essa queixa se transformará em condenação do sistema, como intrinsecamente mau, a não ser na cabeça das pessoas que não saibam ou não possam jamais perceber certas distinções milimétricas e abismais.
E INSISTO em repetir o que já disse em artigo anterior: a Igreja censura cem vezes, dez mil vezes, um milhão de vezes o mau uso, a intemperança social, do mundo que possui as estruturas econômicas do tipo capitalista, mas ao mesmo tempo defende vigorosamente contra a torrente revolucionária, as vigas-mestras da estrutura capitalista.
E NOTE bem o leitor uma coisa: quando eu digo a Igreja condena, a Igreja censura, a Igreja defende, não estou de modo algum "falando em nome da Igreja", estou apenas repetindo a clara e límpida lição que aprendi no seu regaço. Os textos estão aí para quem quiser e souber ler. Para economia de esforço aconselho o uso do excelente Dicionário de Textos Sociales Pontificios, de Angel Torres Calvo. Sobre o capitalismo encontrará na página 309 texto de Leão XIII para provar que esta organización no es condenable por si misma; e logo abaixo textos de Pio XI para completar: pero por sus abusos.
O “SÃO Paulo", "respondendo em plano de elevado debate", volta à sua infeliz afirmação anterior, e para demonstrá-la começa por nos dar alguns exemplos de pessoas que lutaram em favor dos pobres. É pena que em sua invocação dos heróis do catolicismo social não tenha citado Buchez que sempre combateu o veneno da luta de classes (que hoje é o elixir da justiça social dos padres progressistas), e não tenha mencionado Ozanam que tem cheiro de santo. Esses homens admiráveis não defenderam a ganância, não defenderam os abusos, mas jamais cometeram a grosseria intelectual de apresentá-los como decorrências necessárias da estrutura chamada capitalista. Quem cometeu esse erro foi Marx, e depois dele toda uma corrente que segue mais o chocalhar das palavras do que o seu sentido. E hoje, quem disser que a Igreja condena o sistema econômico capitalista como condenou a filosofia social, a antropologia e a cosmovisão comunista, cai no mesmo erro elementar ainda que no cabeçalho do artigo declare solenemente que está num plano elevado. Isto de estar de cima, não basta declarar, é preciso efetivamente ter subido alguns degraus, uns mais fáceis e outros mais difíceis.
NA CONTINUAÇÃO da "prova" de sua tese, o articulista de "O São Paulo" multiplica textos que provam a tese da Igreja a que me referi. Em alguns desses textos o articulista aplica ao sistema capitalista as condenações formuladas por Leão XIII contra o liberalismo, que é realmente uma pestilência mortal severa e justissimamente condenada pela Igreja, mas que não se identifica com o sistema econômico capitalista que pode desvencilhar-se da cosmovisão do liberalismo, cujos extremos hoje os progressistas engatam nos extremos do comunismo.
SERÁ difícil esse desvencilhamento? Talvez. Mas a simples remota possibilidade dele prova que o capitalismo não é intrinsecamente mau e pode ser usado para a justiça social, coisa que o comunismo jamais poderá fazer.
CHAMO a atenção do articulista de "O São Paulo" para a obscuridade em que envolveu as citações da Mater et Magistra, que ostensivamente e magistralmente defendeu o direito de propriedade privada dos meios de produção, o princípio de subsidiaridade que Pio XI já formulara, e o direito de se associarem os homens num empreendimento econômico para seus mútuos interesses (51). Não há mal nenhum no tão denegrido "lucro" que é o estímulo e o regulador racional da empresa. Uma sociedade em que as empresas desdenhassem o lucro e visassem diretamente às sublimes categorias, entraria rapidamente no caos. Qualquer modesto empregado nisto pensa como qualquer banqueiro: ele sai de casa e vai trabalhar para ganhar dinheiro, ou se preferirem, para ganhar o pão com o suor do rosto. As altas e sublimes categorias sociais serão atendidas se o trabalhador se compenetrar de que deve fazer seu trabalho bem feito. A regulação do "lucro" é um problema social administrativo e moral muito difícil. Onde houver abuso cabem as severas advertências da Igreja, mas não se diga que a Igreja condena o lucro em si mesmo, nem se imagine que seja possível uma sociedade em que a produção seja estimulada pelo puro sentimento da dignidade humana. A Igreja sempre teve um enorme bom-senso, e esses utópicos, que provavelmente não começam por aplicar suas utopias aos seus próprios orçamentos, tornam ridícula a doutrina social da Igreja assim desfigurada.
PARA terminar sua "demonstração", de que a Igreja está equidistante entre o capitalismo e o comunismo, o articulista de “O São Paulo" diz: "Apenas a título de lembrete, gostaríamos que o Sr. Corção soubesse que alguns pensadores de hoje vão mais longe, descobrindo no marxismo, melhor do que no capitalismo, um humanismo mais próximo do humanismo cristão. Sobre este ponto de vista preferimos não opinar..."
EU NÃO sinto o menor embaraço, o menor tolhimento, o menor temor dos deuses da atualidade, em opinar sobre este ponto. Bem sei que há, entre ex-católicos, ex-padres, ex-frades, uma legião de idiotas que vê pérolas e pedras preciosas nos excrementos comunistas. Acho que "O São Paulo" exagera um pouco chamando-os de "pensadores". E aqui me detenho, porque nessa discussão que "O São Paulo" diz manter em plano elevado, tive a impressão de ter estado o tempo todo de cócoras. E já que "O São Paulo" fez questão de publicar minha velhice, não me custa confessar que o exercício foi cansativo.