O Novo Catecismo é Católico?, pelo Rev. Pe. Michel Simoulin
- Mosteiro da Santa Cruz
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O Novo Catecismo é Católico?
Padre Michel Simoulin
A leitura e o estudo do novo Catecismo da Igreja Católica são confusos para uma mente clássica ou tomista: raramente se encontra lá definições simples e distinções claras. Este catecismo parece um poema místico, uma sinfonia onde tudo se mistura, o clássico e o moderno, elementos do antigo catecismo e ensinamentos da Igreja conciliar, para cantar com entusiasmo o esplendor de Deus e do homem.
Entre as lembranças felizes, podemos destacar: o fato da criação, a existência dos anjos, a realidade de Adão e Eva, o pecado original e o pecado pessoal, o inferno e o purgatório, os dez mandamentos, a impossibilidade da ordenação de mulheres e do casamento dos “divorciados”, a natureza criminosa do aborto e da eutanásia, a possibilidade da pena de morte, etc. Mas, ao lado disso, encontramos silêncios, omissões, contradições e um certo número de “temas significativos”, estranhos à Igreja Católica, e que analisaremos aqui. Dessa mistura resulta uma impressão de confusão que desconcerta a mente. Em suma, uma leitura capaz de “seduzir os próprios eleitos[i]”.
No entanto, antes de nos dedicarmos à análise de certos temas desta sinfonia, comecemos dando algumas interpretações autênticas do catecismo.
Interpretações autênticas
O Papa João Paulo II
O Papa João Paulo II ordenou a publicação do Catecismo da Igreja Católica por meio da Constituição Apostólica Fidei Depositum[ii], de 11 de outubro de 1992. Ela afirma:
“Depois da renovação da Liturgia e da nova codificação do Direito Canônico da Igreja Latina e dos cânones das Igrejas Orientais Católicas, este Catecismo trará um contributo muito importante àquela obra de renovação da vida eclesial inteira, querida e iniciada pelo Concílio Vaticano II.” (p. 1) “Para mim - que tive a graça especial de nele participar e colaborar no seu desenvolvimento - o Vaticano II foi sempre, e é de modo particular nestes anos do meu Pontificado, o constante ponto de referência de toda a minha ação pastoral, no consciente empenho de traduzir as suas diretrizes em aplicação concreta e fiel, a nível de cada Igreja e da Igreja inteira. É preciso incessantemente recomeçar daquela fonte” (p. 1)
Somos, portanto, advertidos de que este catecismo é uma implementação do Vaticano II. “Deve ter em conta as explicitações da doutrina que, no decurso dos tempos, o Espírito Santo sugeriu à Igreja.” (p. 2) “Incluirá, portanto, coisas novas e velhas.” (id.) O que é antigo é, antes de tudo, “a ordem tradicional já seguida pelo catecismo de São Pio V” (id.), enquanto “o conteúdo é com freqüência expresso de um modo novo” (id.) Em outras palavras, “vinho novo em odres velhos”, contrariamente ao conselho de Nosso Senhor (Mt 9,17).
O propósito ecumênico do catecismo também é claramente explicado pelo Papa: “Pretende dar um apoio aos esforços ecumênicos animados pelo santo desejo da unidade de todos os cristãos” (p. 3)
O Papa também afirma que este catecismo é fruto de uma ampla colaboração e “reflete, deste modo, a natureza colegial do episcopado”.
Finalmente, quanto ao seu valor doutrinal, o Papa o apresenta como “um instrumento válido e legítimo a serviço da comunhão eclesial e como uma norma segura para o ensino da fé” (p. 2). Mas ele “não se destina a substituir os Catecismos locais devidamente aprovados pelas autoridades eclesiásticas, os Bispos diocesanos e as Conferências Episcopais, sobretudo se receberam a aprovação da Sé Apostólica.” (p. 3). Portanto, não pode ser usado para solicitar a supressão de catecismos ruins, mesmo que não tenham recebido a aprovação de Roma.
O Papa apresentou o catecismo na manhã de 7 de dezembro de 1992. Na ocasião, ele insistiu no valor e na importância do catecismo. Trata-se, disse ele, de “um acontecimento de incomparável riqueza e importância[iii].” “A publicação do texto deve, sem dúvida, ser colocada entre os grandes acontecimentos da história recente da Igreja.”
O Papa confirma que este catecismo pretende estar em conformidade com “os ensinamentos do Concílio Vaticano II”. “Neste texto autorizado, a Igreja apresenta aos seus filhos, com uma autoconsciência renovada pela luz do Espírito, o mistério de Cristo, no qual se reflete o esplendor do Pai.” “Este catecismo constitui, antes de tudo, um dom 'verdadeiro', ou seja, um dom que apresenta a Verdade revelada por Deus em Cristo[iv] e que Ele confiou à sua Igreja. O catecismo expressa esta verdade, à luz do Concílio Vaticano II, como é crido[v] , celebrado, vivido e rezado pela Igreja.” Outrora nos era pedido que aceitássemos o Concílio à luz da Tradição, hoje a abordagem inverteu-se. Encontramos a mesma expressão no catecismo, no §11. Notemos também, nesta ocasião, que, para o Papa, a verdade é primeiro crida e vivida antes de ser expressa. Esta é uma abordagem tipicamente modernista, visto que o modernismo acredita que a fé provém do subconsciente e da experiência interior de cada pessoa. Mas isto é contrário ao pensamento de São Paulo, para quem a fé é ex auditu (Rm 10,17), isto é, vem da pregação.
O Papa também confirma a finalidade ecumênica do catecismo: “Ao definir as linhas da identidade doutrinal católica, o catecismo pode ser também um apelo afetuoso a todos aqueles que não fazem parte da comunidade católica. Que compreendam que este instrumento não reduz, mas amplia o quadro da unidade multifacetada, oferecendo um novo impulso ao caminho rumo àquela plenitude de comunhão que reflete e de certo modo antecipa a unidade total da cidade celeste, 'onde reina a verdade, onde a caridade é a lei, onde a extensão é a eternidade' (Santo Agostinho, Epist. 138, 3).” “Os homens, hoje e sempre, precisam de Cristo. Por muitos caminhos, às vezes incompreensíveis, eles o buscam insistentemente, o invocam constantemente e o desejam ardentemente.” Encontramos nesta última frase uma analogia com a nova teologia de Karl Rahner, para quem todo homem é um cristão anônimo[vi].
No dia seguinte, 8 de dezembro de 1992, o Papa “presidiu a Santa Missa na Basílica de Santa Maria Maior[vii]”. Durante a homilia, voltou à questão do catecismo. Ele insistiu novamente na ligação entre o catecismo e o Concílio: “Com a Mãe de Deus, a Igreja dá graças hoje pelo dom do Concílio[viii]. (...) A comunidade dos fiéis dá graças hoje pelo catecismo pós-conciliar. (...) Constitui o fruto mais maduro e completo do ensinamento conciliar, que se apresenta no rico quadro de toda a Tradição eclesial.” “O fruto mais maduro do ensinamento conciliar” – esta expressão capta tão bem o pensamento do Papa que L'Osservatore Romano não hesitou em torná-la o título deste sermão.
“Ó Maria, (...) vós que, no dia de Pentecostes, estáveis presente como Mãe da Igreja, acolhei este fruto do trabalho de toda a Igreja.” “Todos juntos colocamos o novo ‘Catecismo da Igreja Católica’ – que é ao mesmo tempo o dom da Palavra revelada à humanidade e o fruto do trabalho dos bispos e dos teólogos – nas mãos daquela que…” O próprio Papa usa a expressão novo catecismo. Notemos de passagem esta expressão “fruto do trabalho” que nos lembra o novo ofertório, e também a alusão ao Pentecostes: desde o Concílio, continuamos a viver uma nova revelação que os bispos e os teólogos devem expressar para o serviço da comunidade eclesial.
Cardeal Ratzinger
Ele foi o presidente da comissão e do conselho editorial que trabalhou durante seis anos para desenvolver este catecismo. Portanto, está bem posicionado para nos falar sobre ele. Ele fez uma apresentação na sala de imprensa, que foi publicada no L'Osservatore Romano (versão francesa) em 15 de dezembro de 1992, na página 6. Vamos analisar brevemente esse texto.
Em primeiro lugar, ele nos conta que a edição francesa foi apresentada pela primeira vez em 16 de novembro, em Paris. Depois, entre essa data e 7 de dezembro, foram lançadas as versões em italiano e espanhol. “O texto oficial em latim será publicado posteriormente; assim, poderá levar em conta o que a experiência das traduções[ix] revelou ou ainda pode sugerir.” Parece que a Igreja Romana — ou pelo menos sua “equipe de liderança” — não está muito segura de sua fé; precisa de um “teste”.
Qual é a questão fundamental abordada pelo catecismo? “Após a queda das ideologias, o problema do homem, o problema moral, surge hoje, e de uma forma completamente nova, no contexto atual.” Aliás, falaremos também de Deus: “O catecismo fala do ser humano, mas com a convicção de que a questão sobre o homem não pode ser separada da questão sobre Deus. Não falamos corretamente do homem se não falamos também de Deus.”
De onde virá a resposta para esse problema sobre o homem e “também” sobre Deus? “O catecismo formula a resposta que vem da grande experiência comunitária da Igreja de todos os séculos.” É sempre a mesma abordagem modernista: a profissão de fé é a expressão da experiência interior dos fiéis.
E qual será a resposta a esta pergunta? “A informação fundamental sobre o homem no catecismo é formulada assim[x]: o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Tudo o que é dito sobre a conduta correta do homem se baseia nesta perspectiva central.”
É aqui que, em nossa opinião, reside a ambiguidade fundamental do catecismo. Na verdade, esta frase do Gênesis pode ter dois significados diferentes.
Uma interpretação clássica é interpretar a imagem como a natureza intelectual do homem e a semelhança como graça santificante. Entendida dessa forma, essa frase se aplica apenas a Adão. De fato, todos os homens depois dele serão criados à imagem de Deus, mas sem a semelhança de Deus. Eles terão que esperar pelo batismo para recuperar essa semelhança. E ainda se pode especificar que a imagem é distorcida pelas sequelas do pecado original.
As palavras imagem e semelhança também podem ser interpretadas como dois sinônimos. Neste caso, esta frase do Gênesis pode ser aplicada a todo homem, significando que todo homem recebe uma alma espiritual de Deus. Mas então ignoramos a graça santificante. Não podemos, portanto, deduzir a verdadeira dignidade do homem, visto que esta consiste em participar da natureza divina. O homem não é verdadeiramente digno porque é homem (um pecador), mas porque se tornou filho de Deus pela graça. Como disse o Arcebispo Lefebvre, não há dignidade do homem, há apenas a dignidade do cristão. E este cristão será tanto mais digno quanto mais for amigo de Deus. Nosso Senhor não tem a mesma dignidade que qualquer outro homem; a Santíssima Virgem também terá uma dignidade supereminente, etc.
Ao não fazer essas distinções elementares entre natureza e graça, o cardeal e, seguindo-o, o catecismo extrairão muitos erros dessa frase do Gênesis. No entanto, o próprio cardeal se preocupa em nos alertar: “Tudo o que se diz sobre a conduta correta do homem se baseia nesta perspectiva central [a saber: o homem é criado à imagem e semelhança de Deus]. Nela se fundamentam os direitos humanos. (...) Na semelhança de Deus se funda também a dignidade humana, que permanece inviolável em cada homem precisamente por ser homem.” Tudo o que se disser sobre o homem será, portanto, distorcido por esta falha original dos autores do catecismo: direitos humanos, dignidade humana, a exigência de felicidade da natureza humana, etc.
Citemos alguns exemplos dados pelo próprio cardeal: “Todos os seres humanos têm igual dignidade”. Isso é falso: um batizado não tem a mesma dignidade que um não batizado, um pecador não tem a mesma dignidade que um santo.
“A necessidade de felicidade faz parte da nossa natureza.” “A moral do catecismo tem seu ponto de partida naquilo que o Criador colocou no coração de cada homem — a necessidade de felicidade e amor. Aqui se torna visível o que significa ‘semelhança’ com Deus: o ser humano é semelhante a Deus na medida em que pode amar e é capaz da verdade. Portanto, o comportamento moral é, no sentido mais profundo da palavra, um comportamento compatível com a criação.” Tudo isso é falso como resultado dessa grave confusão entre natureza e graça. De fato, nossa verdadeira felicidade é encontrada apenas no amor sobrenatural de Deus. Os seres humanos só podem amar a Deus (como deveriam) através da caridade, e só são capazes da verdade (completa) através da fé. Mas tudo isso não “faz parte da nossa natureza”. Deus não “a colocou no coração de cada homem”. Nossa natureza sem a graça, tal como existe em todos os homens antes do batismo, é incapaz de amar a Deus como deveria. São Tomás explica que o homem sem a graça é incapaz de respeitar o primeiro mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma...” Nossa natureza sem a graça é incapaz de desejar efetivamente a verdadeira felicidade; não poderia “exigi-la”. Se a exigisse, essa felicidade não seria mais gratuita.
O cardeal esclarece que o comportamento segundo a natureza, de que fala o catecismo, é um “comportamento baseado no que foi colocado em nosso ser pelo Criador. Consequentemente, o coração de toda moral é o amor e, sempre seguindo esta indicação, inevitavelmente se encontra Cristo, o amor de Deus feito homem”. Pode ser lírico, mas continua sendo igualmente falso. O amor, como nossa natureza é capaz de amar sem a graça, “a partir do que foi colocado em nosso ser pelo Criador”, é incapaz de nos fazer encontrar Cristo. É, no máximo, uma disposição; para encontrar Cristo, é preciso também e acima de tudo o auxílio da graça para nos fazer produzir o ato de fé. Este silêncio sobre a graça, que aqui equivale a uma negação, é obviamente muito grave.
Primeira Conclusão
Mesmo antes de estudar o catecismo, podemos tirar algumas lições deste exame das “interpretações autênticas”.
Em primeiro lugar, a importância do novo catecismo. O próprio Papa insiste na importância e autoridade deste catecismo.
Essa importância é confirmada pelo sucesso nas livrarias. Certamente, houve uma vasta publicidade que nenhum catecismo católico jamais teve. Mas isso provavelmente não é suficiente para explicar a venda de mais de 500.000 exemplares em poucas semanas. É preciso também levar em conta que os fiéis foram privados de ensino doutrinal por trinta anos. Houve o Concílio; mas, apesar de seu desejo de ser um Concílio pastoral, o Vaticano II não está ao alcance de todos os católicos, e a maioria não se dedicou ao estudo de seus numerosos textos. Quanto aos catecismos e outras Pedras Vivas, o mínimo que se pode dizer é que seu conteúdo doutrinal é fraco, senão inconsistente. Os fiéis tiveram que viver de acordo com práticas que lhes foram impostas em nome da obediência. Agora, finalmente, lhes é dada a oportunidade de conhecer os princípios que nortearam essas reformas: compreendemos seu desejo de se educar, porque é satisfatório para a mente saber por que se age.
O que eles vivenciaram de forma ruim ou com dificuldade, é de se temer que o novo catecismo faça penetrar em suas mentes e que agora eles se apeguem mais completamente a essas novas “verdades” que se acostumaram a viver. Além disso, como observamos, o Papa também insiste no fato de que este catecismo é a continuação lógica do Concílio, “o fruto mais maduro e mais completo do ensinamento conciliar”. Este catecismo é muito importante porque permitirá uma melhor difusão das novas ideias conciliares e pós-conciliares, especialmente em questões de ecumenismo.
O Papa insiste sobretudo na autoridade do catecismo e na sua importância na aplicação do Concílio Vaticano II. O Cardeal Ratzinger dá maior ênfase ao seu conteúdo e aponta o seu erro fundamental, que está na raiz dos erros do ecumenismo e da liberdade religiosa: um naturalismo pseudosobrenatural. A natureza humana não só é capaz de graça, como a exige para a felicidade humana; a redenção é universal; o mundo está cheio de graça. Mas examinemos este conteúdo com mais detalhes.
***
Distinguiremos quatro temas principais no catecismo: a dignidade do homem, seu caráter como amigo e filho de Deus, a natureza da Igreja e os princípios da moralidade. Para cada um deles, citaremos extensivamente o catecismo, para deixar claro aos leitores que não estamos atribuindo nossos pensamentos a ele. No entanto, não citaremos tudo, para não esgotar a paciência dos leitores ou correr o risco de sermos condenados por termos copiado integralmente um catecismo protegido por direitos autorais .
A dignidade do homem
Há quarenta referências à palavra dignidade no índice, várias das quais indicam uma passagem bastante longa. Citemos primeiro o que o Cardeal Ratzinger chamou acima de “informações fundamentais sobre o homem” (itálico acrescentado, salvo indicação em contrário):
“Conhecer a unidade e a verdadeira dignidade de todos os homens. Todos eles são feitos ‘à imagem e à semelhança de Deus[xi].’ (CIC, § 225)”
Já explicamos o erro dessa nova teoria. O homem, marcado pelo pecado original, nasce sem a graça de Deus. Como resultado, ele carece de sua verdadeira dignidade, a de ser filho de Deus pelo batismo.
Este erro fundamental sobre a dignidade humana leva outros, por exemplo, a dizer que a dignidade humana é inamissível[xii]. Um criminoso não perde a sua dignidade, pois esta consiste em ter uma alma espiritual; no limite, os condenados do inferno (se houver) ainda terão toda a sua dignidade.
“O homem e a mulher têm uma dignidade inamissível que lhes vem diretamente de Deus, seu Criador.[xiii] O homem e a mulher são criados em idêntica dignidade, ‘à imagem de Deus’. Em seu ‘ser-homem’ e seu ‘ser-mulher’ refletem a sabedoria e a bondade do Criador.” (CIC, § 369)
Outra falsa consequência: todos os homens têm a mesma dignidade. Um santo não será mais digno do que um pecador, a Santíssima Virgem não será mais digna do que qualquer mulher.
“Entre todos os fiéis de Cristo, por sua regeneração em Cristo, vigora, no que se refere à dignidade e à atividade, uma verdadeira igualdade, pela qual todos, segundo a condição e os múnus próprios de cada um.”[xiv] (CIC, § 872)
Embora este parágrafo fundamente a dignidade do cristão em seu verdadeiro fundamento, a “regeneração em Cristo”, ele ainda é errôneo, pois tira falsamente a conclusão de que todos os cristãos são iguais: isso é contrário às Escrituras, que nos advertem que existem todos os tipos de dons da graça e que os membros da Igreja são complementares, mas desiguais (o pé não é o olho, diz São Paulo).
“O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos por Deus: por um lado, em perfeita igualdade como pessoas humanas e, por outro, em seu ser respectivo de homem e de mulher. "Ser homem, 'ser mulher" é uma realidade boa e querida por Deus.” (CIC, § 369)
Quanto a essa igualdade entre homem e mulher, ela existe na ordem da graça (em Cristo, não há mais nem homem nem mulher, nos diz São Paulo), mas não na ordem da natureza, onde há uma hierarquia natural entre homem e mulher.
Outra consequência errônea: todos os homens terão igual dignidade e toda discriminação será injusta:
“A igualdade entre os homens diz respeito essencialmente à sua dignidade pessoal e aos direitos que daí decorrem. Qualquer forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja (essa discriminação) social ou cultural, ou que se fundamente no sexo, na raça, na cor, na condição social, na língua ou na religião deve ser superada e eliminada, porque contrária ao plano de Deus[xv].” (CIC, § 1935)
“Existem também desigualdades iníquas que atingem milhões de homens e mulheres e se acham em contradição aberta com o Evangelho: A igual dignidade das pessoas postula que se chegue a condições de vida mais justas e mais humanas. Pois as excessivas desigualdades econômicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam escândalo e são contrárias à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e à paz social e internacional[xvi].” (CIC, § 1938)
Dignidade é liberdade
Vimos que o catecismo faz com que a dignidade do homem consista no fato de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Para Santo Agostinho, Santo Tomás e toda a Tradição, o homem é imagem de Deus porque sua alma é uma substância espiritual dotada de inteligência e vontade, e assim se assemelha à Santíssima Trindade. Mas, para o novo catecismo, o que caracteriza sobretudo a imagem de Deus é a liberdade:
“Em virtude de sua alma e de seus poderes espirituais de inteligência e vontade, o homem é dotado de liberdade, ‘sinal eminente da imagem de Deus’[xvii].” (CIC, § 1705)
“Estamos acaso convencidos de que ‘nem sabemos o que convém pedir?’[xviii] Pedimos a Deus ‘os bens convenientes’? Nosso Pai sabe do que precisamos, antes de lho pedirmos,[xix] mas espera nosso pedido porque a dignidade de seus filhos está precisamente em sua liberdade. Mas é preciso rezar com seu Espírito de liberdade para poder conhecer na verdade o seu desejo.”[xx] (CIC, § 2736)
“Deus criou o homem dotado de razão e lhe conferiu dignidade de uma pessoa agraciada com a iniciativa e o domínio de seus atos. ‘Deus deixou o homem nas mãos de sua própria decisão’ (Eclo 15,14), para que pudesse ele mesmo procurar seu Criador e, aderindo livremente a Ele, chegar à plena e feliz perfeição[xxi]”: “O homem é dotado de razão e por isso é semelhante a Deus: foi criado livre e senhor de seus atos[xxii].” (CIC, § 1730)
Notemos de passagem que a citação de Santo Irineu expressa, antes, que a semelhança do homem com Deus consiste em sua razão, sendo a liberdade apenas uma consequência. Isso não impediu que os autores do catecismo escolhessem essa citação para afirmar que a dignidade do homem consiste em sua liberdade.
Como a dignidade do homem consiste na sua liberdade, o homem terá obviamente um direito inalienável à liberdade:
“A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos. Toda pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a cada um esta obrigação de respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, sobretudo em matéria moral e religiosa[xxiii]. Este direito deve ser reconhecido civilmente e protegido nos limites do bem comum e da ordem pública[xxiv].” (CIC, § 1738)
Assim, a liberdade deve ser favorecida em todas as suas formas e qualquer desigualdade ou coerção é uma ofensa à dignidade humana:
“O homem tem o direito de agir com consciência e liberdade, a fim de tomar pessoalmente as decisões morais. ‘O homem não pode ser forçado a agir contra a própria consciência. Mas também não há de ser impedido de proceder segundo a consciência, sobretudo em matéria religiosa.’”[xxv] (CIC, § 1782)
Se analisarmos as citações de São Paulo em seu contexto, veremos que se trata de evitar atos indiferentes em si mesmos, para não escandalizar alguém que os interpretaria mal e os tomaria como ocasião para pecar. Não se trata de respeitar a própria consciência no sentido moderno usado pelo catecismo, isto é, de não impedir alguém de pecar. Essa solicitação de um texto da Escritura é bastante característica e prova que a teoria moderna da liberdade de consciência não tem fundamento na revelação.
Assim, o papel da Igreja na esfera política, que antes consistia em defender a lei de Deus e lembrar aos chefes de Estado seu dever de ajudar as almas a serem salvas, agora consiste unicamente em recordar esta doutrina dos direitos humanos baseada na dignidade-liberdade da pessoa humana:
“Só se pode conseguir a justiça social no respeito à dignidade transcendente do homem. A pessoa representa o fim último da sociedade, que por sua vez lhe está ordenada. A defesa e a promoção da dignidade da pessoa humana nos foram confiadas pelo Criador. Em todas as circunstâncias da história, os homens e as mulheres são rigorosamente responsáveis e obrigados a esse dever.[xxviii]” (CIC, § 1929)
“O respeito à pessoa humana implica que se respeitem os direitos que decorrem de sua dignidade de criatura. Esses direitos são anteriores à sociedade e se lhe impõem. São eles que fundam a legitimidade moral de toda autoridade; conculcando-os ou recusando-se a reconhecê-los em sua lei positiva, uma sociedade mina sua própria legitimidade moral[xxix]. Sem esse respeito, uma autoridade só pode apoiar-se na força ou na violência para obter a obediência de seus súditos. Cabe à Igreja lembrar esses direitos aos homens de boa vontade e distingui-los das reivindicações abusivas ou falsas.” (CIC, § 1930)
“Faz parte da missão da Igreja ‘emitir juízo moral também sobre as realidades que dizem respeito à ordem política, quando o exijam os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas, empregando todos os recursos - e somente estes - que estão de acordo com o Evangelho e com o bem de todos, conforme a diversidade dos tempos e das situações.’[xxx] ” (CIC, § 2246)
Notemos que, neste último parágrafo, a defesa dos direitos humanos tem precedência sobre a preocupação com a salvação das almas.
Outra maneira de dizer a mesma coisa: a Igreja é responsável por defender a transcendência da pessoa humana, transcendência essa que consiste precisamente na sua dignidade-liberdade:
“A Igreja, que em razão de seu múnus e de sua competência, não se confunde de modo algum com a comunidade política, é ao mesmo tempo sinal e salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana. ‘A Igreja respeita e promove a liberdade política e a responsabilidade dos cidadãos.[xxxi].’” (CIC, § 2245)
Entre os direitos humanos que a Igreja deve defender, está obviamente o direito à liberdade religiosa, fundado como os outros na dignidade-liberdade do homem:
“‘Em matéria religiosa, ninguém seja obrigado a agir contra a própria consciência, nem impedido de agir, dentro dos justos limites, de acordo com ela, em particular ou em público, só ou associado a outrem.’[xxxii] Este direito funda-se na própria natureza da pessoa humana, cuja dignidade a faz aderir livremente à verdade divina que transcende a ordem temporal. Por isso, este direito ‘continua a existir ainda para aqueles que não satisfazem à obrigação de procurar a verdade e de aderir a ela[xxxiii].’” (CIC, § 2106)
“Se, em razão de circunstâncias particulares dos povos, for conferida a uma única comunidade religiosa o especial reconhecimento civil na organização jurídica da sociedade, será necessário que ao mesmo tempo se reconheça e se observe em favor de todos os cidadãos e das comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa.[xxxiv].” (CIC, § 2107)
O direito à liberdade religiosa não significa nem a permissão moral de aderir ao erro[xxxv], nem um suposto direito ao erro[xxxvi], mas um direito natural da pessoa humana à liberdade civil, quer dizer, à imunidade de coação externa nos justos limites, em matéria religiosa, da parte do poder político. Este direito natural deve ser reconhecido no ordenamento jurídico da sociedade, de tal maneira que constitua um direito civil.[xxxvii]. (CIC, § 2108)
Eis a citação da referência a Pio XII à qual a nota se refere: “O que não responde objetivamente à verdade e à lei moral não tem direito à existência, nem à propaganda, nem à ação.” Pio XII condena não apenas “um suposto direito ao erro”, como diz o catecismo, mas também um direito à propaganda e à ação do erro e do mal. Ora, reconhecer um “direito natural à imunidade de coação” de uma religião falsa não é precisamente reconhecer seu direito à ação e à propaganda?
“O direito à liberdade religiosa não pode ser em si ilimitado,[xxxviii], nem limitado apenas por uma ‘ordem pública’ entendida de maneira positivista ou naturalista[xxxix]. Os ‘justos limites’ que lhe são inerentes devem ser determinados para cada situação social pela prudência política, segundo as exigências do bem comum, e ratificados pela autoridade civil segundo ‘normas jurídicas, de acordo com a ordem moral objetiva[xl]’.” (CIC, § 2109)
Neste último parágrafo e nestas referências a Pio VI e Pio IX, percebe-se uma tentativa de justificar a doutrina conciliar sobre a liberdade religiosa diante das acusações dos tradicionalistas. Para tornar esta nova doutrina consistente com a doutrina tradicional, os “justos limites” teriam de ser o respeito à lei natural num país pagão e o respeito à lei cristã num país cristão; o que é claramente contrário à doutrina conciliar tal como interpretada pela própria Roma[xli].
Todo homem é amigo e filho de Deus
A Aliança com Noé
“Desfeita a unidade do gênero humano pelo pecado, Deus procura antes de tudo salvar a humanidade passando por cada uma de suas partes. A Aliança com Noé depois do dilúvio[xlii] exprime o princípio da Economia divina para com as ‘nações’, isto é, para com os homens agrupados ‘segundo seus países, cada um segundo sua língua, e segundo seus clãs’ (Gn 10.5)[xliii].” (CIC, § 56)
Aprendemos, então, que “Deus busca salvar a humanidade por meio de cada uma de suas partes”, o que sugere que Deus concedeu a cada parte da humanidade uma religião que dá continuidade a essa aliança com Noé. Como o sinal da aliança com Noé era o arco-íris, não é surpreendente que esse símbolo seja amplamente utilizado pela Igreja Conciliar para expressar seu ecumenismo, por exemplo, no encontro inter-religioso em Bruxelas, em setembro de 1992. Até o Vaticano II, os católicos acreditavam, antes, no que São Paulo afirma, ou seja, que os pagãos, antes da encarnação, tinham que observar a lei natural para se salvarem. A única aliança verdadeira feita entre Deus e os homens com o objetivo de estabelecer uma religião para uma parte da humanidade foi a aliança no Sinai. E, desde a encarnação, judeus e pagãos devem abraçar a religião cristã para serem salvos.
“A Aliança com Noé permanece em vigor durante todo o tempo das nações,[xliv] até a proclamação universal do Evangelho. A Bíblia venera algumas grandes figuras das ‘nações’, tais como ‘Abel, o justo’, o rei-sacerdote Melquisedeque,[xlv] figura de Cristo,[xlvi] ou os justos ‘Noé, Daniel e Jó’. Assim, a Escritura exprime que grau elevado de santidade podem atingir os que vivem segundo a Aliança de Noé, na expectativa de que Cristo ‘congregue na unidade todos os filhos de Deus dispersos’ (Jo 11,52).” (CIC, § 58)
O Catecismo não apenas sugere que as religiões pagãs são consequências da Aliança de Noé, mas também sugere claramente que esta Aliança não foi abolida, uma vez que permanece válida até a proclamação universal do Evangelho e até que “Cristo reúna na unidade todos os filhos de Deus dispersos”, o que não se concretizará até que o ecumenismo seja alcançado. Assim, parece que, mesmo hoje, “aqueles que vivem de acordo com a aliança de Noé podem atingir [uma grande] altura de santidade.”
A Antiga Aliança
Se os pagãos podem afirmar ser amigos de Deus através da aliança com Noé, é ainda mais claro para os judeus, já que “a Antiga Aliança nunca foi revogada”:
“Antigo Testamento é uma parte indispensável da Sagrada Escritura. Seus livros são divinamente inspirados e conservam um valor permanente,[xlvii] pois a Antiga Aliança nunca foi revogada.” (CIC, § 121)
“A relação da Igreja com o Povo Hebreu. A Igreja, Povo de Deus na Nova Aliança, descobre, ao perscrutar seu próprio ministério, seus vínculos com o Povo Hebreu[xlviii] ‘a quem Deus falou em primeiro lugar[xlix]’. Ao contrário das outras religiões não-cristãs, a fé hebraica já é resposta à revelação de Deus na Antiga Aliança. É ao Povo Hebreu que ‘pertencem a adoção filial, a glória, as alianças, a legislação, o culto, as promessas e os patriarcas, dos quais descende Cristo, segundo a carne’ (Rm 9,4-5), pois ‘os dons e o chamado de Deus são sem arrependimento’ (Rm 11, 29).” (CIC, § 839)
Cristo morreu por todos
É verdade que Cristo ofereceu a sua vida por todos os homens e que a sua morte, oferecida por amor, é capaz de salvar todos os pecadores. No entanto, é necessário aplicar esta redenção a cada um. “Esta aplicação é feita pelo batismo, pela penitência e pelos outros sacramentos que derivam o seu poder da paixão de Cristo[l].”
“É também pela fé que a paixão de Cristo se aplica a nós, para que possamos perceber os seus frutos.”[li] Portanto, mesmo que Cristo tenha oferecido a sua vida por todos, nem todos serão salvos, porque nem todos se beneficiam da sua morte pela fé e pelos sacramentos. O Catecismo é no mínimo ambíguo sobre esta questão:
“Este amor não exclui ninguém. Jesus lembrou-o na conclusão da parábola da ovelha perdida: ‘Assim, também, não é da vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca’ (Mt 18,14). Afirma ele ‘dar sua vida em resgate por muitos’ (Mt 20,28); este último termo não é restritivo: opõe o conjunto da humanidade à única pessoa do Redentor que se entrega para salvá-la[lii]. A Igreja, no seguimento dos apóstolos[liii], ensina que Cristo morreu por todos os homens sem exceção: ‘Não há, não houve e não haverá nenhum homem pelo qual Cristo não tenha sofrido’.[liv]” (CIC, § 605)
Esta tradução do latim pro multis para para a multidão (NT: na versão francesa) é falha quando especifica que este termo “não é restritivo”. Este termo é de fato restritivo.
“É ‘o amor até o fim’ que confere o Valor de redenção de reparação, de expiação e de satisfação ao sacrifício de Cristo. Ele nos conheceu a todos e amou na oferenda de sua vida’.[lv] ‘A caridade de Cristo nos compele quando consideramos que um só morreu por todos e que, por conseguinte, todos morreram’ (2 Cor 5,14). Nenhum homem, ainda que o mais santo, tinha condições de tomar sobre si os pecados de todos os homens e de se oferecer em sacrifício por todos. A existência em Cristo da Pessoa Divina do Filho, que supera e, ao mesmo tempo, abraça todas as pessoas humanas, e que o constitui Cabeça de toda a humanidade, torna possível seu sacrifício redentor por todos.” (CIC, § 616)
Ao assumir a natureza humana, Jesus Cristo não assumiu todos nós. Ele assumiu a natureza humana de sua própria Pessoa divina, mas não a de cada um de nós. Ele morreu por todos, mas pode aplicar a virtude salvadora de seu sangue somente às almas que se aproximam dele com humildade, fé e amor.
Limbo?
O limbo é negado na prática, e isso está em total concordância com o que acabamos de ver. Como não é mais necessário que a virtude da paixão de Cristo nos seja aplicada pela fé e pelos sacramentos, não há razão para fechar a porta do céu às crianças que morrem sem batismo:
“Quanto às crianças mortas sem Batismo, a Igreja só pode confiá-las à misericórdia de Deus, como o faz no rito das exéquias por elas. Com efeito, a grande misericórdia de Deus, ‘que quer que todos os homens se salvem’,[lvi] e a ternura de Jesus para com as crianças, que o levou a dizer: ‘Deixai as crianças virem a mim, não as impeçais’ (Mc 10,14), nos permitem esperar que haja um caminho de salvação para as crianças mortas sem Batismo. Eis por que é tão premente o apelo da Igreja de não impedir as crianças de virem a Cristo pelo dom do santo Batismo.” (CIC, § 1261)
Esta negação do Limbo é muito séria. A doutrina católica sobre o Limbo não está definida, mas é certa. Recordemos-a brevemente. A pena para o pecado original é a privação da visão de Deus.[lvii] Aqueles que morrem com o pecado original vão para o Limbo, onde permanecerão por toda a eternidade.[lviii] No Limbo, desfrutam da felicidade natural, sem ódio a Deus e sem dor dos sentidos.[lix] Estas três afirmações não estão definidas, mas são ensinadas com certeza.
A morte do cristão
A reflexão sobre a morte sempre foi para os cristãos uma ocasião de temor salutar. O cristão tira dela a lição de que deve evitar o pecado mortal acima de tudo (pois não há infortúnio maior do que morrer em estado de pecado mortal), que deve esforçar-se para evitar o pecado venial e que também deve procurar fazer penitência para evitar o purgatório. Mas, para o catecismo, não há nada a temer na morte. Eis o que ele diz sobre os funerais cristãos. Em primeiro lugar, descreve o significado da morte da seguinte forma:
“O sentido cristão da morte é revelado à luz do mistério pascal da Morte e Ressurreição de Cristo, em que repousa nossa única esperança. O cristão que morre em Cristo Jesus ‘deixa este corpo para ir morar junto do Senhor’ (2 Cor 5,8).” (CIC, § 1681)
“O dia da morte inaugura para o cristão, ao final de sua vida sacramental, a consumação de seu novo nascimento iniciado no Batismo, a ‘semelhança’ definitiva à ‘imagem do Filho’, conferida pela unção do Espirito Santo, e a participação na festa do Reino, antecipada na Eucaristia, mesmo necessitando de últimas purificações para vestir a roupa nupcial.” (CIC, § 1682)
“A Igreja que, como mãe, trouxe sacramentalmente em seu seio o cristão durante sua peregrinação terrena, acompanha-o, ao final de sua caminhada, para entregá-lo ‘ás mãos do Pai’. Ela oferece ao Pai, em Cristo, o filho de sua graça e deposita na terra, na esperança, o germe do corpo que ressuscitar na glória.[lx] Esta oferenda é plenamente celebrada pelo Sacrifício Eucarístico. As bênçãos que a precedem e a seguem são sacramentais.” (CIC, § 1683)
Este exemplo demonstra quão pouco pastoral é o catecismo. Pois, se há uma ocasião para fazer os cristãos refletirem, é a ocasião da morte de um ente querido. Isso deve ser feito com caridade, é claro, mas a caridade não deve ser confundida com anestesia das consciências. Mesmo em casos de suicídio, o catecismo busca tranquilizar as consciências o máximo possível:
“Não se deve desesperar da salvação das pessoas que se mataram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, dar-lhes ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida.” (CIC, § 2283)
Estamos longe do cuidado pastoral da Igreja "pré-conciliar", que recusava funerais eclesiásticos a suicidas quando estes não demonstravam sinais de contrição. No entanto, é essa atitude que corresponde à verdadeira caridade: com essa recusa, demonstrava a gravidade do suicídio e contribuía grandemente para reduzir a tentação dos cristãos, ajudando-os assim a se salvarem.
Após refletir sobre o significado da morte, o catecismo dá algumas instruções sobre a celebração de funerais. Lembremo-nos disto:
“‘É pela Eucaristia assim celebrada que a comunidade dos fiéis, especialmente a família do defunto, aprende a viver em comunhão com aquele que dormiu no Senhor’, comungando do Corpo de Cristo, do qual é membro vivo, e rezando a seguir por ele e com ele.” (CIC, § 1689)
O catecismo, portanto, incentiva todos os presentes a receber a comunhão na missa de exéquias, sem mencionar as disposições necessárias para isso. Sabendo que, por ocasião dos funerais, muitas pessoas comparecem sem que normalmente ponham os pés na igreja, podemos mensurar o número de sacrilégios que o catecismo incentiva.
A Igreja é a humanidade
Fora da Igreja não há salvação
O Catecismo expõe o dogma da Igreja: Fora da Igreja não há salvação; mas é para esvaziar o conteúdo, de acordo com uma forma tipicamente modernista:
“Como entender esta afirmação, com frequência repetida pelos Padres da Igreja? Formulada de maneira positiva, ela significa que toda salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é seu Corpo: Apoiado na Sagrada Escritura e na Tradição, [o Concílio] ensina que esta Igreja peregrina é necessária para a salvação. O único mediador e caminho da salvação é Cristo, que se nos torna presente em seu Corpo, que é a Igreja. Ele, porém, inculcando com palavras expressas a necessidade da fé e do batismo, ao mesmo tempo confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo, como que por uma porta. Por isso não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja católica foi fundada por Deus por meio de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiserem nela entrar ou nela perseverar[lxi].” (CIC, § 846)
“Esta afirmação não visa àqueles que, sem culpa, desconhecem Cristo e sua Igreja: ‘Aqueles, portanto, que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras a sua vontade conhecida por meio do ditame da consciência podem conseguir a salvação eterna’[lxii].” (CIC, § 847)
Certamente, a Igreja sempre admitiu a possibilidade de salvação para aqueles que a ignoram sem culpa própria. Eles podem então obter a graça de Deus por meio de um batismo de desejo[lxiii]. Mas a Igreja teve uma maneira de se expressar muito mais claramente sob Pio XII, na carta endereçada pelo Santo Ofício a Dom Cushing em 8 de agosto de 1949:
“Nem devemos pensar que qualquer tipo de desejo de entrar na Igreja seja suficiente para a salvação. Pois é necessário que o desejo que ordena alguém à Igreja seja animado pela caridade perfeita. O desejo implícito só pode ter efeito se a pessoa tiver fé sobrenatural. ‘Aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam’ (Hb 11,6). O Concílio de Trento declara: ‘A fé é o princípio da salvação do homem, o fundamento e a raiz de toda justificação, sem a qual é impossível agradar a Deus (Hb 11,6) e vir a compartilhar o destino de seus filhos.’”
Mas outras passagens do Catecismo são ainda mais claras ao esvaziar este dogma “Fora da Igreja não há salvação” de qualquer conteúdo restritivo. Vejamos, por exemplo, a passagem que responde à pergunta: Quem pertence à Igreja Católica?
“Todos os homens, pois, são chamados a esta católica unidade do Povo de Deus (…) A ela pertencem ou são ordenados de modos diversos quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer, enfim, os homens em geral, chamados à salvação pela graça de Deus.[lxiv]” (CIC, § 836)
“São incorporados plenamente à sociedade, que é a Igreja, os que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam a totalidade de sua organização e todos os meios de salvação nela instituídos e em sua estrutura visível - regida por Cristo por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos se unem com Ele pelos vínculos da profissão de fé, dos sacramentos, do regime eclesiástico e da comunhão. Contudo não se salva, embora esteja incorporado à Igreja, aquele que, não perseverando na caridade, permanece dentro da Igreja ‘com o corpo’, mas não ‘com o coração’[lxv].” (CIC, § 837)
“Por muitos títulos a Igreja sabe-se ligada aos batizados que são ornados com o nome cristão, mas não professam na íntegra a fé ou não guardam a unidade da comunhão sob o Sucessor de Pedro[lxvi]. ‘Aqueles que crêem em Cristo e foram devidamente batizados estão constituídos em certa comunhão, embora não perfeita, com a Igreja católica.’[lxvii] Com as Igrejas ortodoxas, esta comunhão é tão profunda ‘que falta bem pouco para que ela atinja a plenitude que autoriza uma celebração comum da Eucaristia do Senhor’[lxviii].” (CIC, § 838)
Em última análise, não há necessidade de nos preocuparmos com aqueles que pertencem a religiões diferentes da católica, visto que o Catecismo nos diz que “os homens, em geral, chamados à salvação pela graça de Deus” fazem parte da Igreja. A única preocupação expressa pelo Catecismo é com os católicos que estão em corpo dentro da Igreja, mas não em coração. Essas afirmações nos parecem muito próximas das proposições condenadas por Pio IX no Syllabus[lxix]:
“É livre a qualquer um abraçar e professar aquela religião que ele, guiado pela luz da razão, julgar verdadeira.” (Proposição 15)
“No culto de qualquer religião podem os homens achar o caminho da salvação eterna e alcançar a mesma eterna salvação.” (Proposição 16)
“Pelo menos deve-se esperar bem da salvação eterna daqueles todos que não vivem na verdadeira Igreja de Cristo.” (Proposição 17)
“O protestantismo não é senão outra forma da verdadeira religião cristã, na qual se pode agradar a Deus do mesmo modo que na Igreja Católica.” (Proposição 18)
Todas as religiões são boas
Acabamos de ver que o Catecismo acredita que todos os homens são, em maior ou menor grau, parte da Igreja. Outra maneira de dizer a mesma coisa é afirmar que todas as religiões contêm uma parte da verdade. Assim, todas as religiões serão “meios de salvação”:
“Além disso, ‘muitos elementos de santificação e de verdade[lxx] existem fora dos limites visíveis da Igreja católica’: ‘A palavra escrita de Deus, a vida da graça, a fé, a esperança, a caridade, outros dons interiores do Espírito Santo e outros elementos visíveis[lxxi]’. O espírito de Cristo serve-se dessas igrejas e comunidades eclesiais como meios de salvação cuja força vem da plenitude de graça e de verdade que Cristo confiou à Igreja católica. Todos esses bens provêm de Cristo e levam a Ele[lxxii] e chamam, por eles mesmos, para a ‘unidade católica[lxxiii]’.” (CIC, § 819)
“’Todos os homens estão obrigados a procurar a verdade, sobretudo naquilo que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, depois de conhecê-la, a abraçá-la e praticá-la.’[lxxiv] Este dever decorre da ‘própria natureza dos homens’[lxxv] e não contraria um ‘respeito sincero’ para com as diversas religiões que ‘refletem lampejos daquela verdade que ilumina a todos os homens’[lxxvi], nem a exigência da caridade que insta os cristãos a ‘tratar com amor, prudência e paciência os homens que vivem no erro ou na ignorância acerca da fé’[lxxvii].” (CIC, § 2104)
Não encontramos aqui expressa a “falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus[lxxviii]”?
O subsistit in
O Concílio Vaticano II já havia inaugurado a expressão “a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica”, em vez de afirmar, com toda a Tradição, que a Igreja de Cristo é a Igreja Católica. O Catecismo continua na linha do Concílio:
“‘A única Igreja de Cristo (...) é aquela que nosso Salvador depois de sua Ressurreição, entregou a Pedro para que fosse seu pastor e confiou a ele e aos demais Apóstolos para propagá-la e regê-la (...) Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na (subsistit in) Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele[lxxix]’: O Decreto sobre o Ecumenismo, do Concílio Vaticano II, explicita: ‘Pois somente por meio da Igreja católica de Cristo, a qual é meio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios de salvação. Cremos que o Senhor confiou todos os bens da Nova Aliança somente ao Colégio Apostólico, do qual Pedro é o chefe, a fim de constituir na terra um só Corpo de Cristo, ao qual é necessário que se incorporem plenamente todos os que, de que alguma forma, já pertencem ao Povo de Deus’[lxxx].” (CIC, § 816)
“O dever social dos cristãos é respeitar e despertar em cada homem o amor da verdade e do bem. Exige que levem a conhecer o culto da única religião verdadeira, que subsiste na Igreja católica e apostólica[lxxxi].” (CIC, § 2105)
Unidade católica
Sabemos que a nota da unidade é a nota fundamental da Igreja Católica, aquela que manifesta sua forma[lxxxii]. Vejamos o que o Catecismo diz sobre isso:
“Quais são estes vínculos da unidade? ‘Sobre tudo isso [está] a caridade, que é o vínculo da perfeição’ (Cl 3,14).” (CIC, § 815)
Contudo, até agora, a Igreja nunca separou o vínculo da caridade do vínculo da fé, que é, inclusive, em certo sentido, o vínculo principal:
“Dizem que somos justificados pela fé, porque a fé é o princípio da salvação do homem, o fundamento e a raiz de toda justificação, sem a qual é impossível agradar a Deus e chegar a compartilhar o destino de seus filhos[lxxxiii]” .
“O eterno pastor e guardião das nossas almas, querendo perpetuar a salutar obra da redenção, resolveu fundar a Santa Igreja, na qual, como na casa do Deus vivo, todos os fiéis se conservassem unidos, pelo vínculo de uma só fé e amor.[lxxxiv]”
“Nenhuma sociedade separada da unidade da fé ou da unidade do seu corpo pode ser chamada de parte ou membro da Igreja[lxxxv].”
“Pelo que, como a caridade se apóia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal[lxxxvi]”
“A unidade, ‘Cristo a concedeu, desde o início, à sua Igreja, e nós cremos que ela subsiste sem possibilidade de ser perdida na Igreja católica e esperamos que cresça, dia após dia, até a consumação dos séculos’[lxxxvii]. Cristo dá sempre à sua Igreja o dom da unidade, mas a Igreja deve sempre orar e trabalhar para manter, reforçar e aperfeiçoar a unidade que Cristo quer para ela. Por isso Jesus mesmo orou na hora de sua Paixão, e não cessa de orar ao Pai pela unidade de seus discípulos: ‘...Que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles esteja me nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste’ (Jo 17,21). O desejo de reencontrar a unidade de todos os cristãos é um dom de Cristo e convite do Espírito Santo[lxxxviii].” (CIC, § 820)
Como o Catecismo diz que devemos ter o desejo de reencontrar a unidade, é claro que ela se perdeu, pelo menos em parte.
Este ensinamento não parece ser compatível com a instrução do Santo Ofício aos bispos de 20/12/1949:
"A doutrina católica deve ser proposta e exposta total e integralmente; não deve ser silenciada nem velada por termos ambíguos o que a verdade católica ensina sobre (...) a única união verdadeira através do retorno dos cristãos separados à única e verdadeira Igreja de Cristo. Sem dúvida, será possível dizer-lhes que, retornando à Igreja, não perderão nada do bem que, pela graça de Deus, se realizou neles até agora, mas que, com seu retorno, esse bem será completado e levado à perfeição.”
“No entanto, evitaremos falar sobre este ponto de tal forma que, ao retornarem à Igreja, eles imaginam que trazem para ela um elemento essencial que lhe faltou até agora.”
O ecumenismo
É assim que o Catecismo diz que devemos responder a esse desejo de recuperar a unidade da Igreja:
“Para responder adequadamente a este apelo, exigem-se:
- uma renovação permanente da Igreja em uma fidelidade maior à sua vocação. Esta renovação é a mola do movimento rumo à unidade[lxxxix].
- a conversão do coração, ‘com vistas a viver mais puramente segundo o Evangelho[xc]’, pois e a infidelidade dos membros ao dom de Cristo que causa as divisões;
- a oração em comum, pois ‘a conversão do coração e a santidade de vida, juntamente’ com as preces particulares e públicas pela unidade dos cristãos, devem ser consideradas a alma de todo o movimento ecumênico e, com razão, podem ser chamadas de ecumenismo espiritual[xci]’;
- conhecimento fraterno recíproco[xcii],
- a formação ecumênica dos fiéis e especialmente dos presbíteros[xciii];
- diálogo entre os teólogos e os encontros entre os cristãos diferentes Igrejas e
comunidades[xciv];
- a colaboração entre cristãos nos diversos campos do serviço aos homens.[xcv]” (CIC, § 821)
Uma vez que a unidade da Igreja deve ser redescoberta, não é de estranhar que o Catecismo insiste no dever do ecumenismo e do diálogo.
“Ao defender a capacidade da razão humana de conhecer a Deus, a Igreja exprime sua confiança na possibilidade de falar de Deus a todos os homens e com todos os homens. Esta convicção esta na base de seu diálogo com as outras religiões, com a filosofia e com as ciências, como também com Os não-crentes e os ateus.” (CIC, § 39)
“‘Todos os homens estão obrigados a procurar a verdade, sobretudo naquilo que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, depois de conhecê-la, a abraçá-la e praticá-la.[xcvi]’ Este dever decorre da ‘própria natureza dos homens’[xcvii] e não contraria um ‘respeito sincero’ para com as diversas religiões que ‘refletem lampejos daquela verdade que ilumina a todos os homens[xcviii]’, nem a exigência da caridade que insta os cristãos a ‘tratar com amor, prudência e paciência os homens que vivem no erro ou na ignorância acerca da fé’.[xcix]” (CIC, § 2104)
“A missão da Igreja exige o esforço rumo à unidade dos cristãos[c]. Efetivamente, ‘as divisões entre cristãos impedem a Igreja de realizar a plenitude da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora lhe pertençam pelo batismo, estão separados da plena comunhão com ela. Não só isso, mas também para a própria Igreja se torna tanto mais difícil exprimir, na realidade de sua plena catolicidade sob todos os aspectos.[ci]” (CIC, § 855)
“A tarefa missionária implica um diálogo respeitoso com os que ainda não aceitam o Evangelho[cii]. Os fiéis podem tirar proveito para si mesmos deste diálogo, aprendendo a conhecer melhor ‘tudo quanto de verdade e de graça já se achava entre as nações, numa como que secreta presença de Deus[ciii]’. Se anunciam a Boa Nova aos que a desconhecem, é para consolidar, completar e elevar a verdade e o bem que Deus difundiu entre os homens e os povos e para purificá-los do erro e do mal, ‘para a glória de Deus, a confusão do demônio e a felicidade do homem[civ]’.” (CIC, § 856)
Contudo, Nosso Senhor não enviou seus Apóstolos para dialogar, mas para ensinar, e a tarefa da Igreja é continuar esse ensinamento da verdade que Deus lhe confiou, não dialogar com ninguém:
“A doutrina católica nos ensina que o primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por sinceras que sejam , nem da indiferença teórica e prática pelo erro ou o vício, em que vemos mergulhados nossos irmãos, mas no zelo pela sua restauração intelectual e moral, não menos que por seu bem-estar material.[cv]”
A hierarquia
No parágrafo sobre hierarquia, após discutir o colégio episcopal, o Catecismo examina os fiéis leigos. Nada é dito especificamente sobre os sacerdotes. Os leigos recebem dos bispos tamanha participação no “ofício sacerdotal, profético e real de Cristo” que é difícil entender por que haveria necessidade de outros membros da hierarquia. O Catecismo está nos preparando para a Nova Era da Igreja, onde haveria apenas leigos e bispos?
“As próprias diferenças que o Senhor quis estabelecer entre os membros de seu Corpo servem à sua unidade e à sua missão. Pois, embora ‘exista na Igreja diversidade de serviços, há unidade de missão. Cristo confiou aos apóstolos e a seus sucessores o múnus de ensinar, de santificar e de governar em seu nome e por seu poder. Os leigos, por sua vez, participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, compartilham a missão de todo o povo de Deus na Igreja e no mundo[cvi]’.” (CIC, § 873)
Esses magníficos privilégios concedidos aos leigos não são concedidos em nenhum lugar aos sacerdotes, nas passagens em que se fala dessa espécie em perigo de extinção (Cf. §§ 1562-1568). Às vezes, questiona-se se os leigos não seriam superiores aos sacerdotes, visto que “o ministério ordenado ou sacerdócio ministerial[cvii] está a serviço do sacerdócio batismal.” (CIC, § 1120).
Certamente, os sacerdotes exercem “um serviço especial” na liturgia sacramental (§ 1142). Mas será esse serviço realmente indispensável, visto que “é toda a Comunidade, o corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que celebra”?
“É toda a comunidade, o corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que celebra. ‘As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é o sacramento da unidade, isto é, o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos Bispos. Por isso, estas celebrações pertencem a todo o corpo da Igreja, influem sobre ele e o manifestam; mas atingem a cada um de seus membros de modo diferente, conforme a diversidade de ordens, ofícios e da participação atual efetiva.[cviii]’ É por isso que ‘todas as vezes que os ritos, de acordo com sua própria natureza, admitem uma celebração comunitária, com assistência e participação ativa dos fiéis, seja inculcado que na medida do possível, ela deve ser preferida à celebração individual ou quase privada[cix]’.” (CIC, § 1140)
“A assembleia que celebra é a comunidade dos batizados, os quais, ‘pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados para serem casa espiritual e sacerdócio santo e para poderem oferecer um sacrifício espiritual toda atividade humana do cristão[cx]’. Este ‘sacerdócio comum’ é o de Cristo, único sacerdote, participado por todos os seus membros (…).” (CIC, § 1141)
São Tomás nos explica de maneira mais precisa que é pelos caráteres de sacramentos dos quais podemos participar do sacerdócio de Nosso Senhor: “Estes não são senão formas de participação no sacerdócio de Cristo, que fluem do próprio Cristo[cxi]”. Mas ele também nos explica que o caráter é um poder espiritual, passivo no caso do batismo, ativo no caso das ordens. O sacerdócio de Cristo e dos sacerdotes é, portanto, um poder ativo, e o sacerdócio comum dos fiéis, um poder passivo. Há aqui uma nuance significativa, que infelizmente não é apontada pelo Catecismo.
A Liturgia
O catecismo insiste na harmonia entre os dois Testamentos, a ponto de nos dizer que “a Igreja conserva como parte integrante e insubstituível, fazendo deles seus, elementos do culto da Antiga Aliança”:
“Na economia sacramental o Espírito Santo leva à realização as figuras da antiga aliança. Visto que a Igreja de Cristo estava ‘admiravelmente preparada na história do Povo de Israel e na Antiga Aliança[cxii]’, a liturgia da Igreja conserva como parte integrante e insubstituível - tomando-os seus – alguns elementos do culto da Antiga Aliança:
- principalmente a leitura do Antigo Testamento;
- a oração dos Salmos;
- e sobretudo a memória dos eventos salvadores e das realidades significativas que encontraram sua realização no Mistério de Cristo (a Promessa e a Aliança, o Êxodo e a Páscoa, o Reino e o Templo, o exílio e a volta).” (CIC, § 1093)
O Catecismo até insiste que a liturgia cristã é semelhante à “fé e à vida religiosa do povo judeu, como são professadas e vividas até hoje”. A expressão é um pouco infeliz e carece dos esclarecimentos necessários sobre a diferença fundamental entre a fé dos antigos judeus e a do povo judeu de hoje:
“Liturgia judaica e liturgia cristã. Um conhecimento mais aprimorado da fé e da vida religiosa do povo judaico, tais como são professadas e vividas ainda hoje, pode ajudar a compreender melhor certos aspectos da liturgia cristã. Para os judeus e para os cristãos, a Sagrada Escritura é uma parte essencial de suas liturgias: para a proclamação da Palavra de Deus, a resposta a esta palavra, a oração de louvor e de intercessão pelos vivos e pelos mortos, o recurso à misericórdia divina. A Liturgia da palavra, em sua estrutura própria, tem sua origem na oração judaica. A Oração das horas, bem como outros textos e formulários litúrgicos, tem seus paralelos na oração judaica, o mesmo acontecendo com as próprias fórmulas de nossas orações mais veneráveis, entre elas o Pai-Nosso. Também as orações eucarísticas inspiram-se em modelos da tradição judaica. As relações entre liturgia judaica e liturgia cristã mas também a diferença de seus conteúdos são particularmente visíveis nas grandes festas do ano litúrgico, como a Páscoa. Cristãos e judeus celebram a Páscoa; Páscoa da história, orientada para o futuro, entre os judeus; Páscoa realizada na morte e na Ressurreição de Cristo, entre os cristãos, ainda que sempre à espera da consumação definitiva.” (CIC, § 1096)
A Missa e os Sacramentos
A respeito do santo sacrifício da Missa, o Catecismo fala de ação de graças e louvor (§ 1359), de um sacrifício que representa (torna presente) o sacrifício da cruz, que é seu memorial e aplica seu fruto (§ 1366). Diz que o sacrifício também é oferecido pelos fiéis defuntos. Se não negasse sua finalidade propiciatória, em vão se buscaria uma afirmação clara. Recordemos o cânone do Concílio de Trento: “Se alguém disser que o sacrifício da Missa é apenas um sacrifício de louvor e ação de graças, ou uma simples comemoração do sacrifício realizado na cruz, mas não um sacrifício propiciatório, (...) seja anátema.”[cxiii] O Catecismo não vai tão longe, mas seu ensinamento permanece seriamente deficiente neste ponto, numa época em que essa finalidade propiciatória é negada na prática pela Nova Missa.
Sobre o matrimônio, o Catecismo repete o erro do novo Código de Direito Canônico ao colocar os fins do matrimônio em pé de igualdade (e até mesmo invertê-los, visto que o segundo é colocado em primeiro lugar). No entanto, esse erro não pôde ser aceito no Concílio, visto que vários prelados, incluindo os Cardeais Browne e Ottaviani, se opuseram vigorosamente a ele.[cxiv]
“A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade de sacramento por Cristo Senhor.[cxv]” (CIC, § 1601)
“A comunidade conjugal está fundada no consentimento dos esposos. O casamento e a família estão ordenados para o bem dos esposos, a procriação e a educação dos filhos. O amor dos esposos e a geração dos filhos instituem entre os membros de uma mesma família relações pessoais e responsabilidades primordiais.” (CIC, § 2201)
Tal inversão rompe a moralidade conjugal. Em particular, permite que os cônjuges, sem motivo suficiente, usem a lei conjugal, dispensando o grave dever de procriação que ela contém.[cxvi] O próprio Catecismo tira esta conclusão:
“Um aspecto particular desta responsabilidade diz respeito à regulação da procriação. Por razões justas, os esposos podem querer espaçar os nascimentos de seus filhos. Cabe-lhes verificar que seu desejo não provém do egoísmo, mas está de acordo com a justa generosidade de uma paternidade responsável. Além disso, regularão seu comportamento segundo os critérios objetivos da moral. A moralidade da maneira de agir, quando se trata de harmonizar o amor conjugal com a transmissão responsável da vida, não depende apenas da intenção sincera e da reta apreciação dos motivos, mas deve ser determinada segundo critérios objetivos tirados da natureza da pessoa e de seus atos, critérios esses que respeitam o sentido integral da doação mútua e da procriação humana no contexto do verdadeiro amor. Tudo isso é impossível se a virtude da castidade conjugal não for cultivada com sinceridade.”[cxvii] (CIC, § 2368)
Estamos longe do ensinamento luminoso de Pio XII quanto às “graves razões" que podem justificar o controle de natalidade (natural) [cxviii].
“A continência periódica, os métodos de regulação da natalidade baseados na auto-observação e no recurso aos períodos infecundos[cxix] estão de acordo com os critérios objetivos da moralidade. Estes métodos respeitam o corpo dos esposos, animam a ternura entre eles e favorecem a educação de uma liberdade autêntica. Em compensação, é intrinsecamente má ‘toda ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento de suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação[cxx]’
‘À linguagem nativa que exprime a recíproca doação total dos cônjuges a contracepção impõe uma linguagem objetivamente contraditória, a do não se doar ao outro. Deriva daqui não somente a recusa positiva de abertura à vida, mas também uma falsificação da verdade interior do amor conjugal, chamado a doar-se na totalidade pessoal.’ Esta diferença antropológica e moral entre a contracepção e o recurso aos ritmos periódicos ‘envolve duas concepções da pessoa e da sexualidade humana irredutíveis entre si[cxxi]’.” (CIC, § 2370)
Certamente, é justo condenar a contracepção artificial. No entanto, o Catecismo se afasta muito da doutrina tradicional sobre o matrimônio ao encorajar “a variante ‘católica’ da contracepção”[cxxii].
A passagem do Catecismo que trata dos casamentos mistos também é muito insuficiente:
“Em muitos países, a situação do casamento misto (entre católico e batizado não-católico) se apresenta com muita frequência. Isso exige uma atenção particular dos cônjuges e dos pastores. O caso dos casamentos com disparidade de culto (entre católico e não-batizado) exige uma circunspecção maior ainda.” (CIC, § 1633)
“A diferença de confissão entre os cônjuges não constitui obstáculos insuperável para o casamento, desde que consigam pôr em comum o que cada um deles recebeu em sua comunidade e aprender um do outro o modo de viver sua fidelidade a Cristo. Mas nem por isso devem ser subestimadas as dificuldades dos casamentos mistos. Elas se devem ao fato de que a separação dos cristãos é uma questão ainda não resolvida. Os esposos correm o risco de sentir o drama da desunião dos cristãos no seio do próprio lar. A disparidade de culto pode agravar ainda mais essas dificuldades. As divergências concernentes à fé, à própria concepção do casamento, como também mentalidades religiosas diferentes, podem constituir uma fonte de tensões no casamento, principalmente no que tange à educação dos filhos. Uma tentação pode então apresentar-se: a indiferença religiosa.” (CIC, § 1634)
“Em muitas regiões, graças ao diálogo ecumênico, as comunidades cristãs envolvidas conseguiram criar uma pastoral comum para os casamentos mistos. Sua tarefa é ajudar esses casais a viver sua situação particular à luz da fé. Deve também ajudá-los a superar as tensões entre as obrigações que um tem para com o outro e suas obrigações para com suas comunidades eclesiais, além de incentivar o desabrochar daquilo que lhes é comum na fé e o respeito por tudo que os separa.” (CIC, § 1636)
Assim, a principal dificuldade apontada pelo Catecismo consiste nas tensões que correm o risco de surgir entre os cônjuges. No entanto, esse perigo tende a desaparecer graças ao “diálogo ecumênico” e à “pastoral comum para os matrimônios mistos”. O Catecismo não menciona o perigo para o cônjuge católico de perder a fé por meio do contato com um cônjuge herético. Como poderia falar disso, se nos apresenta a heresia como mais uma forma de “fidelidade a Cristo”?
Os princípios da moral
Com a questão do casamento, já abordamos em certa medida o âmbito da moralidade. Mas é apropriado estudar essa questão separadamente.
Santo Tomás ensina que o que rege a moral é o “fim último”. O homem deve direcionar sua vida para a bem-aventurança celestial e, consequentemente, utilizar todos os meios que Deus coloca à sua disposição para atingir esse objetivo. É por isso que São Tomás inicia a segunda parte da Suma Teológica, dedicada à moral, com o tratado sobre o fim último do homem, onde demonstra que o verdadeiro objetivo da vida humana só pode ser a visão beatífica. Consequentemente, o homem deve regular suas ações para atingir esse objetivo.
Mas o Catecismo exalta tanto a pessoa humana que parece tornar-se o propósito da vida humana.
O homem é o fim e o cume de tudo; ele deve ser amado mais do que tudo
Em primeiro lugar, a pessoa humana é o fim da sociedade, em consonância com a filosofia personalista, que se tornou a filosofia comum da Igreja conciliar:
“Cada comunidade se define por seu fim e obedece, por conseguinte, a regras específicas, mas ‘a pessoa humana é e deve ser o princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais’.[cxxiii]” (CIC, § 1881)
“Só se pode conseguir a justiça social no respeito à dignidade transcendente do homem. A pessoa representa o fim último da sociedade, que por sua vez lhe está ordenada. A defesa e a promoção da dignidade da pessoa humana nos foram confiadas pelo Criador. Em todas as circunstâncias da história, os homens e as mulheres são rigorosamente responsáveis e obrigados a esse dever.[cxxiv]” (CIC, § 1929)
Então Cristo veio para manifestar o homem a si mesmo, o que parece fazer do homem o fim da revelação divina, sendo a revelação do Pai apenas um meio de descobrir ao homem a sublimidade de sua vocação:
“‘Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação[cxxv].’ Em Cristo, ‘imagem do Deus invisível’ (Cl 1,15)[cxxvi], foi o homem criado à ‘imagem e semelhança’ do Criador. Em Cristo, redentor e salvador, a imagem divina, deformada no homem pelo primeiro pecado, foi restaurada em sua beleza original e enobrecida pela graça de Deus.[cxxvii]” (CIC, § 1701)
A lei evangélica se resume no amor ao próximo:
“A Lei evangélica comporta a opção decisiva entre ‘os dois caminhos[cxxviii]’ e a prática das palavras do Senhor[cxxix]; resume-se na regra de ouro: ‘Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a lei e os profetas[cxxx]’ (Mt 7,12). Toda a Lei evangélica se compendia no ‘mandamento novo’ de Jesus, de nos amarmos uns aos outros como Ele nos amou.[cxxxi]” (CIC, § 1970)
O Catecismo “esquece” o primeiro mandamento da lei evangélica, que, no entanto, é o maior segundo Nosso Senhor, para se lembrar apenas do segundo, que lhe é semelhante. E, no entanto, dificilmente nos explica que o segundo mandamento tem prioridades e que a ordem da caridade exige que amemos primeiro o próximo mais próximo: Deus primeiro, depois nossa alma, depois nossos irmãos cristãos antes de outros homens, nossa família e nossos concidadãos antes dos estrangeiros, etc.
O respeito pela dignidade de cada ser humano e pela qualidade de nossos relacionamentos com os outros se tornará a primeira e fundamental virtude, mais importante que a fé e as outras virtudes que nos conectam a Deus.
Podemos encontrar mais ou menos o vocabulário e até mesmo a ordem da moral tomista, mas tudo será influenciado por essa ênfase na dignidade do homem. Aqui estão, por exemplo, as linhas introdutórias do primeiro capítulo dedicado à moral no Catecismo, o capítulo intitulado... A dignidade da pessoa humana:
“A dignidade da pessoa humana se fundamenta em sua criação à imagem e semelhança de Deus (artigo 1); realiza-se em sua vocação à bem-aventurança divina (artigo 2). Cabe ao ser humano a livre iniciativa de sua realização (artigo 3). Por seus atos deliberados (artigo 4), a pessoa humana se conforma ou não ao bem prometido por Deus e atestado por sua consciência moral (artigo 5). As pessoas humanas se edificam e crescem interiormente: fazem de toda sua vida sensível e espiritual matéria de crescimento (artigo 6). Com a ajuda da graça, crescem na virtude (artigo 7), evitam o pecado e, se o tiverem cometido, voltam como o filho pródigo[cxxxii], para a misericórdia de nosso Pai do Céus (artigo 8). Chegam, assim, à perfeição da caridade.” (CIC, § 1700)
Portanto, a principal razão pela qual a lei moral deve ser cumprida não é que o homem seja obrigado a obedecer a Deus, ou que ele deva trabalhar para salvar sua alma a fim de glorificar a Deus, mas que, por esse meio, ele atesta a dignidade da pessoa humana:
“Por sua razão, o homem conhece a voz de Deus, que o insta a ‘fazer o bem e a evitar o mal’[cxxxiii]. Cada qual é obrigado a seguir esta lei que ressoa na consciência e se cumpre no amor a Deus e ao próximo. O exercício da vida moral atesta a dignidade da pessoa.” (CIC, § 1706)
Aplicação deste princípio:
respeito pelos direitos humanos,
dignidade humana, etc.
Já falamos, na primeira parte do nosso estudo, da defesa dos direitos humanos e da dignidade humana pela Igreja. Esses mesmos temas são naturalmente encontrados quando se trata de determinar os deveres morais dos cristãos: sendo o homem o fim de tudo, como vimos, todos os deveres dos cristãos consistirão em proteger, de uma forma ou de outra, esses direitos e essa dignidade do homem:
“A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua existência, o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo ser inocente à vida[cxxxiv]. Antes mesmo de te formares no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei (Jr 1,5)[cxxxv]. Meus ossos não te foram escondidos quando eu era feito, em segredo, tecido na terra mais profunda (Sl 139,15).” (CIC, § 2270)
“Sejam quais forem os motivos e os meios, a eutanásia direta consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas. É moralmente inadmissível. Assim, uma ação ou uma omissão que, em si ou na intenção, gera a morte a fim de suprimir a dor constitui um assassinato gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo, seu Criador. O erro de juízo no qual se pode ter caído de boa-fé não muda a natureza deste ato assassino, que sempre deve ser condenado e excluído.” (CIC, § 2277)
Como vemos neste último texto, o Catecismo também fala às vezes do respeito devido a Deus: mas é sintomático que ele coloque este respeito depois daquele à dignidade da pessoa humana.
“A castidade representa uma tarefa eminentemente pessoal. Mas implica também um esforço cultural, porque ‘o homem desenvolve-se em todas as suas qualidades mediante a comunicação com os outros’[cxxxvi]. A castidade supõe o respeito pelos direitos da pessoa, particularmente o de receber uma informação e uma educação que respeitem as dimensões morais e espirituais da vida humana.” (CIC, § 2344)
“A pornografia consiste em retirar os atos sexuais, reais ou simulados, da intimidade dos parceiros para exibi-los a terceiros de maneira deliberada. Ela ofende a castidade porque desnatura o ato conjugal, doação íntima dos esposos entre si. Atenta gravemente contra a dignidade daqueles que a praticam (atores, comerciantes, público), porque cada um se torna para o outro objeto de um prazer rudimentar e de um proveito ilícito, mergulha uns e outros na ilusão de um mundo artificial. É uma falta grave. As autoridades civis devem impedir a produção e a distribuição de materiais pornográficos.” (CIC, § 2354)
“No começo, Deus confiou a terra e seus recursos à administração comum da humanidade, para que cuidasse dela, a dominasse por seu trabalho e dela desfrutasse[cxxxvii]. Os bens da criação são destinados a todo o gênero humano. A terra está, contudo, repartida entre os homens para garantir a segurança de sua vida, exposta à penúria e ameaçada pela violência. A apropriação dos bens é legítima para garantir a liberdade e a dignidade das pessoas, para ajudar cada um a prover suas necessidades fundamentais e as daqueles de quem está encarregado. Deve também permitir que se manifeste uma solidariedade natural entre os homens.” (CIC, § 2402)
“Em matéria econômica, o respeito à dignidade humana exige a prática da virtude da temperança, para moderar o apego aos bens deste mundo; da virtude da justiça, para preservar o direitos do próximo e lhe dar o que lhe é devido; e da solidariedade, segundo a regra áurea e segundo a liberalidade do Senhor, que ‘se fez pobre, embora fosse rico, para nos enriquecer com sua pobreza’.” (CIC, § 2407)
“A prostituição vai contra a dignidade da pessoa que se prostitui, reduzida, assim, ao prazer venéreo que dela se obtém. Aquele que paga peca gravemente contra si mesmo; viola a castidade à qual se comprometeu em seu Batismo e mancha seu corpo, templo do Espírito Santo[cxxxviii]. A prostituição é um flagelo social. Envolve comumente mulheres, mas homens, crianças ou adolescentes (nestes dois últimos casos, ao pecado soma-se um escândalo). Se é sempre gravemente pecaminoso entregar-se à prostituição, a miséria, a chantagem e a pressão social podem atenuar a imputabilidade da falta.” (CIC, § 2355)
Essa questão da “atenuação da imputabilidade da culpa” da prostituição, contudo, merece ser tratada separadamente.
Causas escusantes do pecado
A primeira causa escusante do pecado consiste, para o Catecismo, nas “estruturas do pecado”:
“Assim, o pecado toma os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a concupiscência, a violência e a injustiça. Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à bondade divina. As ‘estruturas de pecado’ são a expressão e o efeito dos pecados pessoais. Induzem suas vítimas a cometer, por sua vez, o mal. Em sentido analógico, constituem um ‘pecado social’[cxxxix].” (CIC, § 1869)
Essas estruturas de pecado serão, por exemplo, sociedades que não respeitam os direitos humanos:
“As consequências do pecado original e de todos os pecados pessoais dos homens conferem ao mundo em seu conjunto uma condição pecadora, que pode ser designada com a expressão de São João: ‘O pecado do mundo’ (Jo 1,29). Com esta expressão quer-se exprimir também a influência negativa que exercem sobre as pessoas as situações comunitárias e as estruturas sociais, que são o fruto dos pecados dos homens.[cxl]” (CIC, § 408)
“Ameaças à liberdade. O exercício da liberdade não implica o direito de dizer e fazer tudo. É falso pretender que ‘o homem, sujeito da liberdade, baste a si mesmo, tendo por fim a satisfação de seu próprio interesse no gozo dos bens terrenos’[cxli]. Por sua vez, as condições de ordem econômica e social, política e cultural requeridas para um justo exercício da liberdade são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os fortes como os fracos à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina.” (CIC, § 1740)
“Existem também desigualdades iníquas que atingem milhões de homens e mulheres e se acham em contradição aberta com o Evangelho: A igual dignidade das pessoas postula que se chegue a condições de vida mais justas e mais humanas. Pois as excessivas desigualdades econômicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam escândalo e são contrárias à justiça social, à eqüidade, à dignidade da pessoa humana e à paz social e internacional.[cxlii]” (CIC, § 1938)
É certamente verdade que as condições sociais podem ser ocasiões de pecado. Os cristãos vivenciam isso todos os dias nesta sociedade secular e materialista em que vivem. Mas é uma inversão afirmar que são as sociedades que não respeitam os direitos humanos que são “estruturas de pecado”. Em vez disso, são as sociedades que tomam os direitos humanos como sua lei fundamental que levam as pessoas a pecar, incitando-as a esquecer Deus e a se rebelar.
“A inversão dos meios e dos fins[cxliii], que acaba por conferir valor de fim último àquilo que não passa de meio para segui-lo, ou por considerar as pessoas como meros meios em vista de um fim, produz estruturas injustas, que ‘tornam árdua e praticamente impossível uma conduta cristã conforme mandamentos do Divino Legislador[cxliv]’.” (CIC, § 1887)
É interessante ver nesta citação como o Catecismo afirma dar continuidade à antiga doutrina da Igreja, ao mesmo tempo que a contradiz. A frase citada de Pio XII não fala de sociedades que observariam ou não os direitos humanos, a dignidade do homem, igualdade entre os homens, etc. Pio XII diz algumas linhas acima: “O bem ou o mal das almas depende e se infiltra na forma dada à sociedade, seja em harmonia com as leis divinas ou não..." Para Pio XII, as condições sociais podem ser ocasiões de pecado quando se opõem à lei de Deus. Para o Catecismo, as condições sociais são “estruturas de pecado” quando se opõem aos direitos humanos. Para ver uma “evolução homogênea do dogma” entre as duas posições, seria necessário estabelecer que a Declaração dos Direitos do Homem é outra formulação do Decálogo.
O Catecismo também vê uma causa escusante do pecado na ignorância e em fatores psicológicos e sociais:
“A imputabilidade e a responsabilidade de uma ação podem ficar diminuídas ou suprimidas pela ignorância, inadvertência, violência, medo, hábitos, afeições imoderadas e outros fatores psíquicos ou sociais.” (CIC, § 1735)
“O ser humano deve sempre obedecer ao juízo certo de sua consciência. Se agisse deliberadamente contra este último, estaria condenando a si mesmo. Mas pode acontecer que a consciência moral esteja na ignorância e faça juízos errôneos sobre atos a praticar ou já praticados.” (CIC, § 1790)
Corretamente, o Catecismo recorda que a ignorância pode ser culpável e que, neste caso, não isenta do pecado:
“Muitas vezes esta ignorância pode ser imputada à responsabilidade pessoal. É o que acontece ‘quando o homem não se preocupa suficientemente com a procura da verdade e do bem, e a consciência pouco a pouco, pelo hábito do pecado, se torna quase obcecada[cxlv]’. Neste caso, a pessoa é culpável pelo mal que comete.” (CIC, § 1791)
Contudo, na prática, o Catecismo estende muito além o domínio da ignorância invencível (ou inocente) e outras causas escusantes do pecado:
“Na medida em que rejeita ou recusa a existência de Deus, o ateísmo é um pecado contra a virtude da religião[cxlvi]. A imputabilidade desta falta pode ser seriamente diminuída em virtude das intenções e das circunstâncias. Na gênese e difusão do ateísmo, ‘grande parcela de responsabilidade pode caber aos crentes, na medida em que, negligenciando a educação da fé, ou por uma exposição enganosa da doutrina, ou por deficiência em sua vida religiosa, moral e social, se poderia dizer deles que mais escondem do que manifestam o rosto autêntico de Deus e da religião[cxlvii]’.” (CIC, § 2125)
“O agnosticismo pode, às vezes, conter certa busca de Deus, mas pode igualmente representar um indiferentismo, uma fuga da pergunta última sobre a existência e uma preguiça da consciência moral. Com muita frequência o agnosticismo equivale a um ateísmo prático.” (CIC, § 2128)
“Se for cometido com a intenção de servir de exemplo, principalmente para os jovens, o suicídio adquire ainda a gravidade de um escândalo. A cooperação voluntária ao suicídio é contrária à lei moral. Distúrbios psíquicos graves, a angústia ou o medo grave da provação, do sofrimento ou da tortura podem diminuir a responsabilidade do suicida.” (CIC, § 2282)
“Por masturbação se deve entender a excitação voluntária dos órgãos genitais, a fim de conseguir um prazer venéreo. ‘Na linha de uma tradição constante, tanto o magistério da Igreja como o senso moral dos fiéis afirmaram sem hesitação que a masturbação é um ato intrínseca e gravemente desordenado."’Qualquer que seja o motivo, o uso deliberado da faculdade sexual fora das relações conjugais normais contradiz sua finalidade. Aí o prazer sexual é buscado fora da ‘relação sexual exigida pela ordem moral, que realiza, no contexto de um amor verdadeiro, o sentido integral da doação mútua e da procriação humana[cxlviii]’. Para formar um justo juízo sobre a responsabilidade moral dos sujeitos e orientar a ação pastoral, dever-se-á levar em conta a imaturidade afetiva, a força dos hábitos contraídos, o estado de angústia ou outros fatores psíquicos ou sociais que minoram ou deixam mesmo extremamente atenuada a culpabilidade moral.” (CIC, § 2352)
“In cauda venenum”, diz o provérbio latino: “o veneno está na cauda”. Observe como, nestes dois últimos exemplos, após evocar a lei, o Catecismo mina completamente a sua força. Certamente, a lei existe: essa é a tese. Na prática, na teoria, conseguimos escapar dela. Esta é uma abordagem tipicamente liberal.
Conclusão: Um catecismo que não é católico
Interrogação, indignação, admiração
Com base nos relatos muito elogiosos feitos por todos os escritores católicos, incluindo aqueles que são amigos da Tradição, abri com esperança o Catecismo da Igreja Católica. Li-o... fechei-o... e aquela interrogação que assombrava os dias do pequeno Tomás de Aquino me veio à mente: quem é Deus? O que é Deus? Ouso acrescentar que aquele clamor de indignação que abalou os céus durante a revolta de Lúcifer quase me abalou a alma: Quis ut Deus? Quem é como Deus? E ainda fiquei tentado a retomar a admiração de Jesus Cristo pelo administrador desonesto: “Et laudavit dominus villicum iniquitatis quia prudenter fecisset”, “e o mestre elogiou o administrador desonesto pela prudência de sua conduta”. Interrogação, indignação e admiração, tais são os sentimentos entre os quais oscila minha mente ao final desta leitura, que, no entanto, pretendia ser benevolente.
Interrogação, porque não encontrei respostas claras para as grandes perguntas que podem ser feitas à Igreja: o que é Deus? o que é a Igreja? o que é a graça? o que é um sacramento? o que é a Missa? O que é o sacerdote? Encontrei muitas descrições, qualificações e muitas considerações, às vezes muito belas e verdadeiras, sobre essas coisas, mas quase nenhuma daquelas boas definições, precisas e inequívocas, com as quais a Igreja sempre amou proteger sua fé. Nem uma única vez, por exemplo, você encontrará, para definir Deus, as palavras de São João: “Deus é espírito”, enquanto o Antigo Testamento é abundantemente citado, e, claro, esta outra palavra de São João: “Deus é amor!”. A própria fé nos é apresentada, antes de tudo, como “a resposta do homem a Deus que se revela” (§ 26)... devemos esperar até os § 153 e seguintes para ter uma descrição mais exata dela, e o § 1814 para ter sua definição.
Indignação, não tanto pela forma como Deus é tratado, mas pelo destino reservado à sua Igreja. Aí reside o pecado mortal deste Catecismo, que retoma e estrutura os pecados do Concílio Vaticano II: ecumenismo doutrinal, liberalismo religioso, colegialidade e promoção do sacerdócio comum dos fiéis em detrimento do sacerdócio ministerial dos presbíteros (§ 874 a 933), desaparecimento da finalidade propiciatória do sacrifício da Missa (§ 1356 a 1381), judaização da Igreja (compare, entre outros, a sutil mudança entre a Páscoa judaica e o sacrifício da cruz, nos § 1363 e 1364; o memorial parece ser o mesmo). Chegamos a nos perguntar o que nos separa dos judeus (§ 839), já que esperamos a mesma coisa que eles (§ 840), já que quase tudo o que é católico nos vem dos judeus (até mesmo o Pater § 1096) e devemos até aprender com eles a ser bons católicos (id.). Somos mais culpados do que eles pela morte de Nosso Senhor (§ 598: a Igreja não hesita em imputar aos cristãos a gravíssima responsabilidade pelo suplício de Jesus), e acima de tudo não tentamos descobrir se nossos primeiros mártires foram massacrados pelos judeus. Os protestantes e seitas semelhantes são meios comuns de salvação (§ 819). Quanto aos ortodoxos, realmente nos perguntamos onde está o problema (§ 839). Os muçulmanos acreditam no Deus criador (e, portanto, trinitário?), e até mesmo, sem dúvida, em Jesus Cristo, já que têm a fé de Abraão (§ 841).
Em tudo isso, o que é que, acima de tudo, constitui a unidade da Igreja? Talvez você pensasse que fosse a fé? Bem, não! É a caridade! É também fé, mas secundariamente (§ 815). A fé, mesmo que se afirme ser necessária para a salvação (§ 161), não é mais considerada o início da salvação. Não é mais o ponto de partida da justificação e, portanto, o vínculo fundamental da Igreja. Que contraste com o magnífico decreto do Concílio de Trento sobre a justificação, tão claro e tão preciso! Que lhe explica que a única Igreja de Cristo “subsiste” (subsistit, em latim no texto, o verniz da Tradição obriga!) na Igreja Católica, que não é a única Igreja de Cristo, mas simplesmente uma de suas realizações (§ 816). O que não impede o fato de que “Fora da Igreja não há salvação” (Estamos realmente beirando o integrismo).
Quanto ao Estado, nestas condições, é claro que não deve dar preferência a nenhuma religião (§ 2107, 2244 e segs.), especialmente à nossa, que não pode pretender ser a única verdadeira e dona da verdade.
Podemos manter todos os nossos dogmas — e os essenciais são preservados, exceto no que diz respeito à Igreja — mas com a condição de admitirmos e respeitarmos todos os “elementos de santificação e verdade” contidos em outras religiões.
Algumas outras questões merecem menção: os fins do matrimônio são invertidos (§§ 1601 e 2201); o controle da natalidade parece conformar-se a essa inversão, já que “justas razões” (quais?) são suficientes para legitimá-lo; a consciência humana é a primeira de todas as vigárias de Cristo (§ 1178); a caridade passa sempre pelo respeito ao próximo e à sua consciência (§ 1789); a pessoa humana é o princípio, o sujeito e o fim de toda a ordem social (§§ 1881, 1907, 1929 e 1930); o respeito à própria dignidade e aos próprios direitos é a norma fundamental que rege toda a ordem moral, expressa nos Dez Mandamentos (ver, por exemplo, o aborto, §§ 2270 a 2273).
Por fim, admiração pela competência dos editores, especialistas no método modernista. Este trabalho é muito bem feito, e o método é hábil, tortuoso. Tal é a grande desonestidade deste trabalho: há, de fato, alguns lembretes belíssimos, que nos alegram ler, mas a abordagem intelectual é distorcida e perverte tudo o que este Catecismo pode conter de bom. Qual é o ponto de partida das reflexões? O homem, ainda homem e sempre homem. Onde esperamos Deus, encontramos o homem. Exemplos: título do primeiro capítulo dedicado à fé: o homem é capaz de Deus; título do primeiro capítulo dedicado à moral: a dignidade da pessoa humana.
E também esta outra especialidade do pensamento modernista: “Nos seus escritos e discursos parecem, não raro, sustentar ora uma ora outra doutrina, de modo a facilmente parecerem vagos e incertos. Fazem-no, porém, de caso pensado (...) É por isto que nos seus livros muitas coisas se encontram das aceitas pelo católicos; mas, ao virar a página, outras se vêem que pareceriam ditadas por um racionalista.[cxlix].” Por exemplo, § 1698: a primeira e última referência desta catequese será sempre Jesus Cristo. Na página seguinte, a primeira pergunta é: a dignidade da pessoa humana. Outro exemplo, § 2105: a Igreja manifesta assim a realeza de Cristo sobre toda a criação e, em particular, sobre as sociedades humanas. Vire a página, § 2108: direito natural à liberdade civil em matéria religiosa.
Ultimum in executione, primum in intentione
Este Catecismo ilustra a precisão do adágio de São Tomás: ultimum in executione, primum in intentione — o que é o primeiro na ordem da intenção é o último na ordem da execução. Ele vem por último, mas nos revela toda a intenção dos reformadores que trabalham há mais de trinta anos na Igreja (uma intenção detectada e denunciada no Concílio por Dom Lefebvre): fazer, além de uma Igreja conciliar que ninguém pode dizer o que é, uma nova Igreja Católica, onde a palavra universal significa colegiada, mundial e cósmica, uma Igreja para o homem, para toda a humanidade justificada pela encarnação do Verbo divino. Esta Igreja da Nova Era do homem, todos os homens fazem parte dela, qualquer que seja a sua religião, se forem fiéis à sua consciência e respeitosos da consciência dos outros. O papel da religião, nesta Igreja liberal e cósmica, não é transmitir uma verdade da qual é depositária, mas dar aos homens, em concordância com as outras religiões, um mínimo ético que permita a todos viverem felizes em paz com o próximo. Qual é esse mínimo? O reconhecimento e o respeito pela dignidade e pelos direitos da pessoa humana. O amor ao Homem suplantou o de Deus... e que Jesus Cristo disponha como quiser com os príncipes da mentira que concordam em venerar o Homem convosco, se vós mesmos os venerardes.
Este Catecismo é a conclusão, a consumação e a síntese de trinta anos de convulsões conciliares. Chega no momento oportuno, como Napoleão, para pôr fim aos excessos e aos excessos — o que reforça seu lado conservador — e para estruturar a obra da Revolução de maneira coerente e ordenada. Assim, torna acessível a todos, como um compêndio teológico, tudo o que permaneceu inacessível ao comum dos fiéis, tudo o que estava difuso, confuso, disperso em uma multidão de textos, discursos e ações. Dá a todos esses erros força legal e obrigatória. Ninguém pode ignorar a lei conciliar hoje.
Uma nota: examine a lista de referências. De todos os papas citados pelo catecismo, para o século XX, faltam apenas três: João Paulo I (isso é facilmente explicado), Bento XV (ainda é plausível) e, finalmente, São Pio X. Este último, não mais do que São Pio V (exceto uma vez pelo Papa João Paulo II na Constituição Apostólica), é citado. Talvez ele não tenha nada a nos ensinar sobre catecismo, doutrina, Missa, Eucaristia ou sacerdócio? Ou talvez tenha muito a nos ensinar sobre modernismo?
Bonum ex integra causa
Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu — o bem só existe se a coisa for inteiramente boa, o mal assim que houver um único defeito — nos diz corretamente o adágio escolástico. Isso é ainda mais verdadeiro, se assim se pode dizer, em questões de fé. Veja o que diz São Tomás: a fé não permanece em um homem depois que ele rejeita um único artigo de fé (II II, q. 5, a. 3); aquele que persistentemente se recusa a crer em um dos pontos contidos na fé não tem o habitus da fé, que possui aquele que não crê em tudo explicitamente, mas está disposto a crer em tudo (II II, q. 5, a. 4, ad l); os habitus infusos são perdidos por um único ato contrário (De Veritate, q. 14, a. 10, ad 10).
Assim como a Virgem Maria não seria imaculada se tivesse a mais leve mancha, um catecismo não é católico se a fé que ensina não for íntegra, total e claramente explicada. O Catecismo da Igreja Católica, portanto, não é católico. Expressa o êxtase conciliar diante do esplendor do homem e só pode seduzir pobres cristãos, privados por trinta anos de qualquer formação doutrinária séria. É uma sinfonia discordante demais para não esfolar a fé católica; é a sinfonia do novo mundo, para a Nova Era do homem no terceiro milênio.
Todas as heresias antigas e recentes foram cuidadosamente evitadas, a fim de ensinar uma nova, mais sutil, que um dia será formalmente condenada como heresia; este novo erro diz respeito à relação entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, teoricamente distintas, mas praticamente confundidas. Ele coloca no homem uma demanda por felicidade, em vez de reconhecer nele um desejo natural de felicidade. Também confunde esse desejo-demanda por felicidade com a busca por Deus ou Jesus Cristo. Portanto, leva a este raciocínio subjacente: Deus quer que todos os homens sejam salvos; agora Deus é bom e poderoso o suficiente para salvar todos os homens. Portanto, Deus deve salvar todos os homens, visto que ele colocou em cada um a demanda por felicidade.
Esta passagem do Catecismo é de certa forma um autorretrato seu, ao mesmo tempo que retrata perfeitamente a impostura fatal e mortífera que invadiu a Igreja do Senhor. Concílio Vaticano II:
“Antes do advento de Cristo, a Igreja deve passar por uma provação final que abalar a fé de muitos crentes[cl]. A perseguição que acompanha a peregrinação dela na terra[cli] desvendará o ‘mistério de iniquidade’ sob a forma de uma impostura religiosa que há de trazer aos homens uma solução aparente a seus problemas, à custa da apostasia da verdade. A impostura religiosa suprema é a do Anticristo, isto é, a de um pseudo-messianismo em que o homem glorifica a si mesmo em lugar de Deus e de seu Messias que veio na carne.[clii]” (CIC, § 675)
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA É UM CATECISMO QUE NÃO É CATÓLICO, é o de “uma religião mais universal que a Igreja Católica, unindo todos os homens que finalmente se tornaram irmãos e camaradas no ‘reino de Deus’. Não se trabalha para a Igreja, trabalha-se para a humanidade[cliii].”
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[i]De fato, alguns defensores da Tradição consideraram necessário elogiar este novo catecismo, ou pelo menos criticar aqueles que o criticaram (Nota do editor)
[ii]Documentação Católica nº 2063 de 3 de janeiro de 1993, pp. 1 a 3
[iii]Esta citação e as seguintes foram retiradas do L'Osservatore Romano em francês, 15 de dezembro de 1992, p. 5.
[iv]Que triste ver o próprio Papa sacrificar-se à moda de falar como os protestantes, dizendo em Cristo, enquanto os católicos sempre falaram de Cristo, o que é muito mais preciso, já que a palavra Cristo significa Messias.
[v]Esta palavra e as seguintes estão em itálico no texto.
[vi]Sobre esta questão, veja a resenha do livro de Dörmann, A Estranha Teologia de João Paulo II, na edição 5 de Le Sel de La Terre
[vii]Esta citação e as seguintes foram retiradas do L'Osservatore Romano, em francês, de 15 de dezembro de 1992, p. 4.
[viii]Esta expressão e as duas seguintes estão em itálico no texto.
[ix]Traduções de quê? O texto oficial em latim ainda não foi publicado, mas já está traduzido; este deixa-nos a sonhar. Notemos também este apelo à experiência para desenvolver o padrão da fé.
[x]O L'Osservatore Romano usa ponto e vírgula aqui. Presumimos que seja um “erro de impressão” e colocamos dois pontos.
[xi]Gn 1/26
[xii]que não pode ser perdida
[xiii]Cf. Gn 2,7-22
[xiv]CIC, cân. 208; cf. LG 32 – 4, AA 2
[xv]GS 29, § 2.
[xvi]GS 29, § 3.
[xvii]GS 17.
[xviii]Rm 8, 26.
[xix]Cf. Mt 6, 8.
[xx]Cf. Rm 8,27.
[xxi]GS 17.
[xxii]Santo Irineu, Haer. 4, 4, 3.
[xxiii]Cf. DH 2.
[xxiv]Cf. DH 7.
[xxv]DH 3.
[xxvi]1 Co, 8, 12.
[xxvii]Rm 14, 21.
[xxviii]SRS 47.
[xxix]Cf. PT 65.
[xxx]GS 76, § 5
[xxxi]GS 76, § 3.
[xxxii]DH 2.
[xxxiii]DH 2.
[xxxiv]DH 6.
[xxxv]Cf. Leão XIII, enc. Libertas præstantissimum.
[xxxvi]Cf. Pio XII, discurso de 6 de dezembro de 1953.
[xxxvii]Cf. DH 2.
[xxxviii]Cf. Pio VI, breve Quod aliquantum.
[xxxix]Cf. Pio IX, enc. Quanta cura.
[xl]DH 7.
[xli]Sobre esta questão, veja o artigo “A Declaração sobre a Liberdade Religiosa do Concílio Vaticano II é compatível com a Tradição?” em Le Sel de la Terre nº 2 (Nota do editor).
[xlii]Cf. Gn 9, 9.
[xliii]Cf. Gn 10, 20-31
[xliv]Cf. Lc 21, 24.
[xlv]Cf. Gn 14, 18.
[xlvi]Cf. Hb 7, 3.
[xlvii]Cf. DV 14.
[xlviii]Cf. NA 4. 4
[xlix]MR, Vendredi Saint 13 : oraison universelle VI.
[l]S Th III, q. 49, a. 1, ad 4.
[li]S Th III, q. 49, a. 1, ad 5
[lii]Cf Rm 5, 18-19.
[liii]Cf 2 Co 5, 15 ; Jo 2, 2.
[liv]Cc. Quiercy em 853: DS 624.
[lv]Cf. Gl 2, 20; Ef 5, 2, 25.
[lvi]Cf. 1 Tm 2, 4.
[lvii]Inocêncio III, Dz 1201.
[lviii]Bento XII contra os armênios, Dz 536.
[lix]São Pio V contra Baio, Dz 1049.
[lx]Cf. 1 Cor 15, 42-44
[lxi]LG 14
[lxii]LG 16; cf. Denzinger/Schönmetzer, Enchiridion symbolorum, Herder, 1976, 36ª edição (doravante mencionado DS), n° 3866-3872.
[lxiii]Sobre esta questão do batismo de desejo, Le sel de la terre publicará em breve um estudo do Padre Laisney (Nota do editor). (NT: Publicado no Le Sel de la Terre número 11, inverno de 1994-95)
[lxiv]LG 13.
[lxv]LG 14.
[lxvi]LG 15.
[lxvii]UR 3.
[lxviii]Paulo VI, discurso de 14 de dezembro de 1975; cf. UR 13-18.
[lxix]Cf. DS n° 2915 a 2918.
[lxx]LG 8.
[lxxi]UR 3; cf. LG 15.
[lxxii]Cf. UR 3.
[lxxiii]LG 8.
[lxxiv]DH 1.
[lxxv]DH 2.
[lxxvi]NA 2.
[lxxvii]DH 14.
[lxxviii]Pio XI, Mortalium animos, 6 de janeiro de 1928.
[lxxix]LG 8.
[lxxx]UR 3.
[lxxxi]Cf. DH 1.
[lxxxii]Cf. Le Sel de la Terre 1, Verão de 1992, p. 26
[lxxxiii]Concílio de Trento. Decreto sobre a Justificação. cap. 8. Cf. Dumeige, La Foi Catholique, ed. de l'Orante, Paris 1961 (doravante citado FC), n.º 567.
[lxxxiv]Vaticano I, Pastor Æternus, FC n° 466.
[lxxxv]Projeto de Constituição sobre a Igreja do Primeiro Concílio do Vaticano, cf. FC n° 459.
[lxxxvi]Pio XI, Mortalium animos, 6 de janeiro de 1928.
[lxxxvii]UR 4.
[lxxxviii]Cf. UR 1.
[lxxxix]Cf. UR 6.
[xc]Cf. UR 7.
[xci]UR 8.
[xcii]Cf. UR 9.
[xciii]Cf. UR 10.
[xciv]Ver UR 4; 9; 11.
[xcv]Cf. UR 12.
[xcvi]DH 1.
[xcvii]DH 2.
[xcviii]NA 2.
[xcix]DH 14.
[c]Cf. RM 50.
[ci]UR 4.
[cii]Cf. RM 55.
[ciii]AG 9.
[civ]AG 9.
[cv]São Pio X, Notre Charge Apostoloque, 25 de agosto de 1910.
[cvi]AA 2.
[cvii]LG 10.
[cviii]SC 26
[cix]SC 27.
[cx]LG 10.
[cxi]II, q. 63, a. 3.
[cxii]LG 2.
[cxiii]DS, n.º 1753.
[cxiv]Ralph M. Wiltgen, O Reno se Lança no Tibre, Éditions du Cèdre, 4ª ed., 1982, p. 267.
[cxv]CDC, cân. 1055, § 1.
[cxvi]Sobre esta questão, veja-se o artigo do Padre Marie-Dominique sobre a moral conjugal, “La fécondité dans le mariage”, Sel de la terre 2, outono de 1992, p. 54s.
[cxvii] GS 51, § 3
[cxviii] Cf. fr. Marie-Dominique, “La fécondité dans le mariage”, Le Sel de La Terre 2, Outono de 1992, pp. 58 e 59.
[cxix]Cf. HV 16.
[cxx]HV 14.
[cxxi]FC 32.
[cxxii]Cf. o excelente número do Courrier de Rome de junho de 1991, intitulado “La variante ‘catholique’ de la contraception” (BP 156, 78001 Versalhes Cédex).
[cxxiii]GS 25, § 1.
[cxxiv]SRS 47.
[cxxv]GS 22, § 1.
[cxxvi]Cf. 2 Cor 4,4.
[cxxvii]Cf. GS 22, § 2
[cxxviii]Cf. Mt 7, 13-14.
[cxxix]Cf. Mt 7, 21-27.
[cxxx]Cf. Lc 6, 31.
[cxxxi]Cf. Jo 15, 12
[cxxxii]Cf. Lc 15, 11-31.
[cxxxiii]GS 16.
[cxxxiv]Cf. CDF, instr. “ Donum vitae ” 1, 1.
[cxxxv]Cf. Lc 23, 40-43.
[cxxxvi]GS 25, § 1.
[cxxxvii]Cf. Gn 1,26-29.
[cxxxviii]Cf. 1 Cor 6, 15-20.
[cxxxix]Cf. RP 16.
[cxl]Cf. RP 16
[cxli]CDF, instr. “Libertatis conscientia” 13.
[cxlii]GS 29, § 3.
[cxliii] Cf. CA 41.
[cxliv]Pio XII, discurso de 1º de junho de 1941.
[cxlv]GS 16.
[cxlvi]Cf. Rom 1, 18
[cxlvii]GS 19, § 3.
[cxlviii]CDF, decl. “Persona humana” 9.
[cxlix]São Pio X, Pascendi Dominici Gregis, 8 de setembro de 1907
[cl]Cf. Lc 18,8; Mt 24,12
[cli]Cf. Lc 21,12; Jo 15,19-20.
[clii]Cf. 2 Ts 2, 4-12; 1 Ts 5,2-3; 2 Jo 7; 1 Jo 2,18-22.
[cliii]São Pio X, Notre Charge Apostolique, 25 de agosto de 1910.