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O alcázar de Toledo

Por Gustavo Corção


Nos dias de abril e maio que andei pelo Velho Mundo, vi muita coisa que me encheu os olhos e a alma de admiração. Não discorda Platão das Sagradas Escrituras, quando diz que a admiração é o princípio da sabedoria, porque o temor filial, segundo São Gregório e Santo Tomás, é um estremecimento da alma agradecimento que permanece e resplandece no céu. Torno a dizer: vi muita coisa que me encheu os pulmões da alma de gratidão e admiração. Deus é grande e todo-poderoso, e o homem, esse quase-nada, espécie de mofo nascido nos desvãos de um planeta, quando se ergue para louvar a Deus torna-se gigantesco e admirável, e é capaz de gravar nas pedras o sorriso dos anjos, e de construir catedrais, rosáceas, vitrais que nos enchem de estupefação. “Passou por aqui uma raça de gigantes…”, dizia eu com meus botões na Sainte-Chapelle ou no Alcobaça.

Era sempre diante de um passado mais lendário do que histórico, e por isso mais verdadeiro, porque as lendas cuidam das coisas essenciais que escapam aos historiadores perdidos na imensa feira de superfluidades. “Passou por aqui uma raça de gigantes…” “Passou…”

Mas num lugar do Velho Mundo pude ver o prodígio da permanência e da sobrevivência da raça de gigantes, até os dias deste século, até ontem. Refiro-me ao Toledo.

Toledo é uma cidade, hoje pequena, regada pelo Tejo, o mesmo Tejo de Camões e o mesmo rio de minha aldeia de Fernando Pessoa. A sudoeste de Madri, distante uma hora. Toledo é um prodígio sem igual. Sua preciosidade começa por imemorial antiguidade. Já dois séculos antes de Cristo, Toledo foi colônia cartaginesa e depois colônia romana. E logo nos primeiros dias do cristianismo Toledo se torna centro de irradiação, foco de difusão e núcleo de estudo e de doutrinação. Desde o primeiro século até o oitavo da era cristã reuniram-se em Toledo 18, sim, dezoito concílios, sendo os mais importantes os de 396, 400 e 589 com o triunfo da Igreja Católica na Espanha contra a heresia ariana.

Além disso, convém lembrar que foi em Toledo que durante toda a Idade Média se forjaram as melhores espadas com que a Cristandade defendia seu território como defendera sua doutrina. Saltando por cima dos visigodos e dos mouros, temos em Toledo a capital da Espanha até Filipe II. No século XVI temos em Toledo o pintor El Greco, cuja maravilhosa casa até hoje exibe o ainda mais maravilhoso Enterro do Conde de Orgaz.

Tudo isto se inscreve no patrimônio de grandezas deixadas pela raça de gigantes que passara pelas terras da Cristandade; mas o que me deixou sufocado na visita que fiz a Toledo foi uma cripta do Alcázar restaurada, e nesta cripta com um altar o que me fascinou foi a dupla lápide aos pés do altar, com os seguintes nomes:

José Moscardó Ituarte Luis Moscardó

Eu não sabia que ia ali encontrar seus túmulos e seus nomes, e por isso fui tomado por uma surpresa que me prostrou de joelhos. O mundo inteiro, digo mal, o mundo inteiro que não fechou os olhos à evidência e não se recusou à admiração dos feitos admiráveis, sabe o que foi a resistência do Alcázar, em 1936. Sitiado voluntário na fortaleza de Toledo, com 1.000 combatentes — e mais mil mulheres, crianças, velhos — Moscardó organizou-se para resistir e para sustentar seus dois mil habitantes. De início teve de entregar seu filho. A história é conhecida. Estão lá ainda a mesa de trabalho e o telefono que naquele dia tocou. Era o Chefe de Milícia dos Rojos que chamava Moscardó para intimidá-lo a render-se em 10 minutos, sem o que mandaria fuzilar seu filho Luis, em poder dos 12.000 milicianos que cercavam o Alcázar. A resposta de Moscardó foi seca e instantânea:

— Você não sabe o que é a honra de um soldado, e por isso me faz essa proposta.

— Você fala assim porque pensa que estou blefando. Venha cá, Moscardó. Fale com teu pai.

Luis: — Oiga, papá?

José Ituarte: — Que hay, hijo mio?

Luis: — Nada de particular, papá. Dicen que me van a fusilar si no te rindes. Que debo hacer?

José Ituarte: — Tu sabe como pienso; tu padre no se rinde. Si es cierto que te van a fusilar, encomienda tu alma a Dios y muere como español: da un Viva España! y Viva Cristo Rey!

Luis: — Es muy facil, papá. Haré las dos cosas… Un beso muy fuerte, papá.

José Ituarte: — Adios, hijo mio. Un beso muy fuerte.

E foi depois desse começo que José Ituarte desenvolveu uma sobre-humana energia para organizar a defesa, com um mínimo de armas, e organizar a subsistência de seus dois mil filhos adotivos. O que realmente espanta nessa epopéia de nossos dias não é a bravura, é sobretudo a força de resistência, a força de paciência com que se transformou o forte bombardeado dia e noite, por muito mais bocas de fogo do que The Light Parade de Tennyson, porque sobre o Alcázar, além das quatro rosas do vento, chovia fogo do céu. Aviões despejavam bombas, e José Ituarte ocupava-se com a moenda das reservas de trigo, com um motor de automóvel, e a organização de um circo para divertir as crianças…

Não cabe aqui a centésima parte da epopéia do Alcázar de Toledo. Cabe ainda um reparo. Estas coisas aconteceram neste século de tantas degradações. Eu vivia, respirava, comia, dormia e trabalhava nos meus esquemas eletrônicos, enquanto a Espanha, Toledo, o Alcázar, Moscardó defendiam o cristianismo, a civilização, a honra, e tudo o mais que dá à vida o valor de ser vivida. Por um conjunto de bloqueios e conjurações, em que este século é fértil, passou-me despercebido o feito no momento mesmo em que eu poderia ter respirado em sincronismo com os heróis do Alcázar. Estupidamente perdi essa oportunidade de ser contemporâneo de uma raça de gigantes. Convertido à Fé Católica, ainda mais estupidamente perdi a oportunidade de agradecer a Deus tanta grandeza humana. Por um triz tive a sorte de sobreviver, e de ainda poder admirar, e de ainda poder agradecer. parte dessa história está no meu livro O Século do Nada.

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