O BRASIL E "LE MONDE"
- Mosteiro da Santa Cruz

- 9 de jul.
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de jul.

Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo em 19 de junho de 1971
RECEBI um curioso recorte de Le Monde datado de 27 de março e referente, como de costume, às torturas praticadas no Brasil. Desta vez a testemunha, ou melhor, a acusadora é uma advogada brasileira, D. Anita de Carvalho, que diz horrores da completa arbitrariedade do sistema penal existente no Brasil, onde a Justiça está inteiramente corrompida e qualquer pessoa é presa por qualquer denúncia. "Alguns procuradores — diz D. Anita de Carvalho a Le Monde — sabem muito bem e às vezes reconhecem diante de nós (...) que eles acusam e levam inocentes à condenação. Mas a Justiça está totalmente corrompida no Brasil."
ATÉ aqui não vemos nada de especialmente curioso e original. D. Anita de Carvalho certamente já encaminhou a mesma história à Comissão Pontifícia de Justiça e Paz, que, como todos sabemos, é o reduto da festiva esquerda católica e o repositório de todas as queixas de todos os marcitos alves contra o Brasil. Onde, neste recorte, se encontra matéria nova para um fugaz divertimento é no tópico em que D. Anita diz que, tendo compreendido que a Justiça no regime militar do Brasil é uma farsa, conclui que não mais poderia exercer seu ofício, e então "deixou marido e filhos em São Paulo para ir à Europa e correr mundo a fim de dar seu testemunho sobre o regime que fabrica leis para uso externo, leis que ele mesmo todos os dias viola."
RECEIO que meu distraído ou sonolento leitor não tenha apreciado o sabor picante desse testemunho de D. Anita de Carvalho. Ela diz que deixou marido e filhos em São Paulo exatamente no mesmo tom que diria tê-los deixado na Suíça. Esquece-se que está apontando ao mundo um pobre grande país entregue a facções cruéis e arbitrárias, como estavam os judeus na Alemanha Nazista, e como estão todos na União Soviética, e, com a maior naturalidade, diz que vai correr mundo, para dar seu testemunho, e com naturalidade ainda mais assombrosa diz a Le Monde que deixou marido e filhos em São Paulo.
IRRESISTIVELMENTE veio-me à memória uma cena de Conde e Barão representada há cerca de mil anos pelo inesquecível Chaby, onde o novo-rico, ontem vendeiro e hoje Conde e Barão, diz cerimoniosamente a uma senhora distintíssima da qual queria divergir: "Homem, parece-me que a senhora está bêbada:"
ESSA D. Anita de Carvalho parece-me que não está em seu juízo perfeito; ou então, como diziam minhas tias, também de mil anos atrás, essa D. Anita é esposa e mãe desnaturada.
COISA comparada com esse testemunho de Dona Anita, só conheço os artigos em que Tristão de Athayde regularmente escreve contra o Governo brasileiro para provar aos povos das quatro rosas dos ventos que, no Brasil, não se pode escrever artigos contra o Governo.
AGORA o colunista do JB está vivendo um momento de grande expectativa: está ansiosamente desejando que a "experiência Allende" do Chile dê os esperados frutos. E o colunista, num minuto de abatimento, chega a entrever a possibilidade de um fracasso da experiência Allende e logo acrescenta que tal coisa será um desastre para a América Latina, porque, a seu ver, a melhor ou última esperança da América Latina está num socialismo marxista-com-liberdade, coisa que me soa como um socialismo à milanesa.
NESSE meio tempo um jornalista francês, admiradíssimo, descobre que Cuba fracassou. Toda a varredura, ou a borra do canalhismo da intelligentzia francesa, com Jean-Paul Sartre (o nauseabundo) à frente, anos atrás dizia da experiência cubana os mesmos delirantes disparates que Tristão de Athayde diz hoje da "experiência" chilena.
E A IMPRESSÃO penosa que colhemos de toda essa algaravia de clérigos e "intelectuais" é a de estarmos vivendo num tempo essencialmente e visceralmente indócil. Sim, nosso fim de século tem essa marca sinistra de uma estupidez obsessiva e granítica. O mundo pagou para ver o socialismo, pagou com duas guerras. Na União Soviética, além das perdas da guerra, os russos pagaram para ver e sofreram, com a NEP e a Reforma Agrária, e as sucessivas "experiências", uma perda que se avalia em cerca de 100 milhões de vidas. Até hoje a URSS ainda é um enorme campo de concentração. Mas conseguiu, graças a uma concentração de verbas num setor da cultura, progressos quase iguais aos dos Estados Unidos na astronáutica — e em mais nada. Não conseguiu até hoje resolver satisfatoriamente o problema da produtividade agrícola; não conseguiu realizar a terça parte do que fazem os canadenses e os neozelandeses; não conseguiu no seu imenso território de vinte milhões de quilômetros quadrados resolver a socialização agrícola; não conseguiu o modesto ideal chestertoniano de "três alqueires e uma vaca" para cada família socialista: mas parece que vai conseguir colocar uma vaca em três metros quadrados de uma estação interplanetária.
ORA, diante de todos esses fracassos do socialismo, tantas vezes condenado pela Igreja e há mais de cem anos repelido por católicos lúcidos e virtuosos, como Ozanam e Donoso Cortez, diante do malogro sucessivo de todas as experiências socialistas, um século hemiplégico e esclerosado insiste em esperar um socialismo novo, com liberdade; ou insiste em se decepcionar diante dos malogros. O velho professor, que passou a vida inteira empenhado na belíssima aventura de acender lumes de entendimento e flashes de evidências provadas nas inteligências que a ele recorriam, tem a dolorosa impressão de viver agora num século que ainda aprende a mexer com as moléculas, os átomos e os corpúsculos infra-atômicos, mas emperradamente, obstinadamente nada pode ou quer aprender do mundo e da vida.
E PARA maior tristeza e vergonha nossa é no meio de um povo farto de dons de Deus, cercado de pretensões doutrinais, norteado há vinte séculos por toda uma Conferência-Universal de santos papas e santos doutores, é nesse povo escolhido, nessa multidão de homens e mulheres mais insistentemente chamados, que vemos surgir uma sub-raça de obstinados indóceis que ainda esperam alguma coisa dos Allende, dos Tupamaros, e de outros estrumes do século.




